direito ao ensino

‘Chove, mar agitado… Você pensa que a professora não vem, e ela chega’

Há 15 anos, professora mudou de vida para educar crianças de escola de comunidade caiçara de Ilhabela. “Depois de um mês aqui, não quis mais sair”

Danilo Ramos
Danilo Ramos
Cristina organiza atividades ao ar livre e integra saberes tradicionais ao conteúdo da escola da comunidade caiçara, principalmente no contato com os mais velhos

Cinco e meia da manhã. A repórter estava em Ilhabela, no litoral paulista, saindo para começar o trabalho e encontrou na rua um antigo vizinho. Ele perguntou se ela tinha caído da cama e ela explicou que estava indo fazer uma reportagem sobre a escola da comunidade tradicional caiçara da Mansa, uma praia isolada no município, onde só é possível chegar a pé ou de barco. E aí, sem saber, o vizinho deu uma das informações mais importantes da reportagem. Falou assim: “Sabia que eu ajudei a reformar essa escola? Fiz isso porque tinha certeza que ela seria muito importante para gente”. Ora, se ele se propôs a ir tão longe para ajudar é porque aquela escola devia mesmo ser ter um papel decisivo na comunidade caiçara.

Chegar até a Praia Mansa não é simples. São 22 quilômetros por estrada de terra, onde só circulam jipes 4×4. No caminho, o jipeiro Valdir, contratado pela prefeitura para fazer o transporte dos professores, mostra locais dos últimos desabamentos. Alguns tão sérios que, apesar de constante manutenção, exigiram que professores cruzassem trechos da estrada a pé.

Depois de mais de uma hora chega-se à Praia de Castelhanos, cada vez mais procurada por turistas. No entanto, não foi perto dos quiosques que paramos. O caminho seguiu pela praia até uma região conhecida por Lagoa, de onde sai uma pequena trilha no meio da Mata Atlântica.

Daí em diante foram mais 25 minutos de caminhada, variando entre subidas e descidas, até que foi possível voltar a ouvir o barulho do mar: estávamos chegando na Mansa, uma praia pequena na costa de Ilhabela. Voltada para o oceano e não para o continente, área mais conhecida do município. Onze famílias vivem no local, 36 pessoas, muitas delas com laços familiares entre si.

Garantir escola na comunidade caiçara

Mais alguns passos na trilha e já é possível ver a escola municipal Professor João Antônio Cesar, já na faixa de areia, perto da arrebentação. Na única sala de aula, com uma janela grande voltada para o mar, trabalha há seis anos Cristina Maria Teixeira. Uma professora que topou o desafio de viver naquela lonjura para garantir escola e educação de qualidade para as crianças da comunidade caiçara.

Escola e vida: Sou professor para que a cultura Guarani continue viva

Vinda de família de professoras, Cristina seguiu um caminho diferente de seus parentes e colegas de magistério: optou por trabalhar nas comunidades tradicionais mesmo que isso significasse ficar longe de família, morar em um alojamento e só retornar para casa uma vez por mês.

“É uma coisa com que eu me identifiquei. O professor daqui tem de ter o perfil de trabalhar com as comunidades tradicionais e é uma coisa que eu gosto. Gosto de trabalhar com turmas multisseriadas e gosto das crianças, são muito amorosas”, conta Cristina.

Desde que começou, já se vão 15 anos nas comunidades, com passagem por cinco delas. Em sua primeira experiência, na comunidade do Saco do Sombrio, lecionou para dois alunos. Ela lembra da chegada: “Eu não queria nem descer. O barco que levava os professores ia deixando cada um na comunidade onde trabalhava. Eu sempre via a praia e as casas, mas quando chegou no Saco do Sombrio não tinha nada. Fiquei querendo voltar no mesmo barco, mas respirei fundo e fui ver como era. Foi uma semana de aperto aperto no coração. Depois de um mês, eu não queria mais sair de lá.”

Ensinar e aprender

Cristina gostou tanto que que vive até hoje com o marido no Saco do Sombrio. Mas a vida de professor nas comunidades é um tanto nômade. Por isso Cristina passou muito tempo vivendo em alojamentos anexos a escolas das praias onde trabalhou. Uma delas foi na Ilha de Vitória, a mais afastada da zona urbana, a quatro horas de barco do centro de Ilhabela, se o tempo está bom.

“Quando eu morava nas escolas eu não ficava sozinha. Toda hora tinha alguém para conversar. Eles iam pescar, separavam dois filés de peixe e davam para mim. Se alguém fazia um bolo, separava dois pedaços para mim”, lembra a professora. “Naquele tempo era o professor que tinha de limpar escola e fazer a comida. Eu acordava bem cedo, deixava tudo pronto para os alunos tomarem café e já começava a preparar o almoço. Eu dava aula, o feijão já estava no fogo, deixava os alunos fazendo atividade e ia ver o arroz.”

Hoje, cada escola de comunidade caiçara deve contar com ao menos um auxiliar de serviços gerais, responsável pela limpeza e pelo preparo das refeições. Além disso, dois barqueiros têm contrato com a prefeitura para fazer o transporte de professores, alunos, materiais escolares e alimentos. Todos os funcionários são moradores da comunidade.

Uma delas é Marciana Gonçalves de Souza, a Márcia, há 15 anos responsável pelo preparo das três refeições diárias servidas aos alunos e professores da Mansa. Ela cresceu na comunidade e aprendeu a ler na escola, onde fez até a 4ª serie. Hoje é possível estudar até pelo menos o 9º ano do ensino fundamental. “Meus filhos terminaram os estudos aqui e depois foram para Castelhanos fazer o ensino médio. Meu marido também estudou aqui, assim como meus avós, que já faleceram”, conta.

Profissão: professora

Na sua trajetória como docente, Cristina passou ainda pelas escolas das comunidades de Serraria e Fome. Hoje, na Praia Mansa, ela tem seis alunos em uma turma multisseriada, que vai da educação infantil ao 5º ano do ensino fundamental. Nos seis anos de trabalho na comunidade, a professora se formou em Pedagogia à distância e atualmente consegue conciliar o deslocamento diário entre sua casa, no Saco do Sombrio, e o trabalho, em um trajeto de 40 minutos feito em sua própria embarcação.

“Está chovendo, o mar está agitado, quando pensa que a professora não está chegando, ela está chegando ali. Eu não costumo faltar. Eu só falto quando é reunião ou se for preciso mesmo, se eu estiver doente. Teve uma vez que não deu para descer aqui e desci na Praia Vermelha, ao lado da Mansa, e vim andando. Cheguei atrasada, mas cheguei”, conta a professora.

Reformada há pouco tempo, a escola da Praia Mansa está equipada com jogos, estantes de livros e materiais de pintura. Há ainda um pequeno pátio com refeitório e espaço de brinquedos, uma cozinha e um quarto para alojamento dos professores, com banheiro e lavanderia. Toda energia da escola e da comunidade vem de placas solares e geradores a combustível.

Durante a tarde são mais sete alunos do ensino fundamental II, que utilizam a mesma sala. Desta vez, as aulas são com os professores Ligia Duarte e Rafael, casal de biólogos que veio de Poços de Caldas (MG) para lecionar na Praia Mansa. Eles se dividem para dar conta de todas as disciplinas, um dos principais desafios dos professores de escolas tradicionais, como conta João Paulo de Souza, que já foi diretor de escola de comunidade caiçara e hoje é secretário de Educação de Ilhabela.

Olhar o contemporâneo e as tradições

“Tendo aluno a gente tem professores e todos são habilitados. Eles fazem um teste seletivo de contratação especifico para tradicionais. A gente trabalha com professores de alfabetização e com professores de especialidades, no ensino fundamental II. Os especialistas, nós atribuímos por área de conhecimento, com os blocos de linguagens, exatas e biológicas.”

Hoje Ilhabela tem oito escolas de ensino fundamental em comunidades tradicionais, todas multisseriadas. Elas são abertas e mantidas segundo a demanda de alunos de cada uma.

Cristina é uma exceção entre os professores por morar em uma comunidade tradicional. Na maioria das vezes, os docentes vêm de fora e alguns acabam tendo dificuldades de se adaptar e desistem do trabalho. Isso pode causar uma rotatividade de professores, um dos problemas a serem superados para melhorar a qualidade da educação nas comunidades tradicionais.

Uma alternativa para resolver o problema seria melhorar o modelo de contratação nas escolas das comunidades tradicionais, que em Ilhabela ocorre por contratos de um ano de duração, na maioria das vezes não renovável. Além disso, a prefeitura elabora um meio de beneficiar os ainda poucos moradores das comunidades que estudam ou já formaram em Pedagogia e em Licenciaturas. A ideia é ampliar as oportunidades de emprego para membros da comunidade e garantir a permanência dos professores.

Currículo para escola da comunidade

Outra medida importante iniciada há pouco tempo pela prefeitura é a elaboração de um currículo escolar específico para as comunidades tradicionais, que aborde, trabalhe e incentive a cultura caiçara, trazendo para a sala de aula elementos únicos dessa cultura, como a fabricação de redes, o cerco do peixe e a construção artesanal de canoas e remos.

Para auxiliar no processo, a secretaria de Educação está em diálogo com a Fiocruz e com a prefeitura de Paratiy (RJ), que desde 2015 possui um currículo especial para as comunidades tradicionais. “A Praia Mansa destoa de Castelhanos. Eles não exploram o turismo e vivem bastante da pesca do cerco. A gente tem de estar a atrelado ao mundo moderno, sim, mas não podemos permitir que se perca a cultura a história locais”, conta Souza.

Em seu trabalho, Cristina já prioriza a cultura tradicional. “Eu trago para a sala de aula a vivência deles: o peixe, a rede, o pai que eles veem indo para o mar pescar. Até para a alfabetização partimos do conhecimento deles, trabalhamos o P do peixe, o R de rede, o C de canoa e por aí vai”, conta.

Sempre que é possível, a professora vai além da sala de aula, organiza atividades ao ar livre e integra saberes tradicionais ao dia a dia escolar. No ano passado, foram de barco até outra praia, Vermelha, para conhecerem o trabalho da moradora Alaide Rafael de Souza, de 56 anos, que domina uma das atividades tradicionais mais importantes da cultura caiçara: a fabricação de farinha de mandioca.

“Ela veio com os alunos, a gente foi para roça com todos eles para arrancar mandioca, trouxemos para casa de farinha, raspamos, lavamos e a criançada acompanhou tudo. Fizemos 12 quilos de farinha e eu doei um quilo para cada aluno”, lembra Alaide.

Cada criança, uma realidade

Se o ensino fundamental é oferecido em todas as comunidades que tenham crianças, com garantia de transporte escolar por barco caso necessário, o ensino médio ainda não é uma realidade. Apenas três comunidades oferecem essa modalidade de ensino, que é de responsabilidade do governo estadual.

Por isso, ainda é comum que jovens precisem se deslocar para a zona urbana para concluir os estudos e nem sempre acabam voltando, um problema comum nas zonas rurais brasileiras.

Ainda assim, professores observam que moradores das comunidades tradicionais de Ilhabela têm reivindicado cada vez mais o direito de estudar, em diferentes faixas etárias. “Aconteceu uma coisa maravilhosa ano passado, na formatura: teve o senhor da Praia Mansa que se formou no EJA, a filha que se formou no ensino médio e a netinha que se formou no fundamental I. Foi um momento riquíssimo, porque você ver um senhor de 60 anos, de uma comunidade tradicional, se formando, é muito especial”, lembra Souza.

São momentos como esse que estimulam Cristina, apesar de tantos desafios, a permanecer em seu trabalho. “Cada criança é uma realidade. As vezes você dá a mesma aula, mas você aprendeu de um jeito, ela de outro, aquele não conseguiu acompanhar e você precisa elaborar outra forma para ele entender. Eu costumo não comparar criança com criança, eu comparo o que ela sabe com o que vai aprender. Eu amo o que eu faço, sou suspeita para falar, mas não me imagino fazendo outra coisa em outro lugar.”

Edição: Paulo Donizetti de Souza

Leia a primeira reportagem da série