Escola e vida

Educar tradicional: ‘Sou professor para que a cultura Guarani continue viva’

Docente indígena de São Paulo usa educação escolar como uma ferramenta para garantir manutenção do território e do modo de vida Guarani Mbya

Danilo Ramos
Danilo Ramos
Professores encaram jornadas em barco, jipes ou até optam por morar nas escolas para garantir educação para povos tradicionais

São Paulo – De onde nasce o desejo de ser professor? No caso do jovem Guarani Luciano Lima Gabriel, nasce da necessidade histórica dos povos indígenas de resistir e de lutar para que a cultura de seus antepassados continue viva. “Hoje em dia é tudo mais difícil por conta da influência do juruá (homem branco) e das políticas que há mais de 500 anos pressionam os povos indígenas. Eu tenho a preocupação de como vai ser o futuro das crianças indígenas”, conta Luciano, um dos moradores da comunidade Guarani Mbya da periferia de São Paulo. “Essa influência, que vem de fora da aldeia, nos afeta. Hoje as crianças se interessam mais por televisão e celular. Por isso quis trabalhar com elas, passar o que eu sei e ajudar a manter a cultura Guarani”.

O desejo de contar a história de professores de comunidades tradicionais do estado de São Paulo vem da necessidade de valorizar o trabalho dos milhares de docentes que estão em sala de aula lutando por uma educação de qualidade e pela preservação dos saberes ancestrais desses povos e seus territórios. A primeira dessas histórias vem do extremo sul da capital paulista. Nem todo mundo sabe, mas a maior cidade do país abriga três aldeias indígenas, todas com escolas e, portanto, com professores. 

Uma das maiores aldeias é a Tenondé Porã, que se distribui entre os distritos de Parelheiros e Marsilac. Ela está a 64 quilômetros do centro de São Paulo e é a casa de pelo menos mil Guarani Mbya.

Longe, um lugar que existe

Quem vai até a aldeia chega a duvidar que esteja mesmo na cidade de São Paulo. São quilômetros e quilômetros por estradas de terra, depois de cruzar uma balsa pela Represa Billings. As casas vão ficando vez mais esparsas e a Mata Atlântica começa a ganhar mais e mais espaço. 

Depois de quase uma hora e meia de viagem, parte dela sem cruzar com nenhum outro carro, é possível perceber ao longe alguma movimentação: casas mais próximas, um vaivém de pessoas e, de repente, uma construção grande, arredondada, quase toda feita em madeira. É o Centro de Educação e Cultura Indígena (Ceci) Tenondé Porã.

É lá que Luciano, de 25 anos, mora e leciona. Com aparência de mais jovem, chegou ao trabalho de mochila nas costas e boné. Muito calmo, com voz forte e tranquila, Luciano nos contou que para ser educador indígena nos Cecis não é necessário ter uma formação específica. Mas é preciso conhecer bem os costumes e o modo de viver dos Guarani. 

E disso ele entende bem: nascido na aldeia, Luciano viveu a vida toda na Tenondé Porã, primeiro com os pais e hoje com a esposa e os dois filhos, um deles seu aluno. Preocupado com manutenção da cultura Guarani no futuro, Luciano procurou as lideranças da aldeia e compartilhou seu desejo: ser professor e ensinar aos pequenos tudo o que sabia.

Modelo próprio, comunidade única

Por isso, para ele, seu trabalho é, na verdade, uma prática de resistência. “Nós ensinamos muitas coisas para as crianças, como fazer roçado, em que épocas plantar cada coisa, porque comer determinados alimentos, como nossos antigos se alimentavam. Gosto muito de trabalhar essa área de preservação ambiental e de alimentação”, conta.

O Ceci é um dos primeiros espaços da cidade criados exclusivamente para educação dos Guarani em idade pré-escolar. Ele foi construído em 2004 pela prefeitura de São Paulo, na gestão de Marta Suplicy, e é fruto de anos de luta de lideranças indígenas pelo direito à educação de seu povo. Atualmente existem outros dois Cecis na cidade, um na aldeia do Jaraguá, no extremo oeste, e outro na aldeia Krukutu, também na zona sul.

Quem espera encontrar uma escola, convencional, com salas de aula, secretaria e sala dos professores, pode se surpreender: no centro da construção há um grande espaço multiuso, usado como refeitório e também para brincadeiras e atividades. De alguns pontos saem corredores que levam aos banheiros, à sala de informática e à sala de TV.

O curioso é que quando chegamos não havia alunos na escola. Eles estavam na Casa de Reza, um dos locais mais importantes das Aldeias Guarani. Enfileiradas, crianças de várias idades, matriculadas ou não no Ceci, cantavam e dançavam agradecendo pela sabedoria de seus ancestrais e pelo alimento do dia. 

Brincadeira e alimento na cultura Guarani

“Na cultura Guarani a casa de reza é muito importante. É onde nos fortalecemos tanto fisicamente como espiritualmente. A gente vem a esse espaço sagrado para agradecer. Os mais velhos falam que a casa de reza é o coração da aldeia. Onde tem aldeia indígena guarani tem que ter a casa de reza, por isso ela é o principal espaço de atividades, não só para agradecimento, mas para música, reunião e alimentação”, conta o coordenador cultural do Ceci, Isaque Karai, que já foi professor.

Depois dos rituais na casa de reza, as atividades escolares podem ser na roça, na mata, na represa ou na casa de um membro da comunidade. Isso porque toda a rotina pedagógica é adequada aos costumes Guarani, considerando as especificidades culturais, linguísticas e territoriais desse povo.

Até por isso, só se fala Guarani na escola. O português é a segunda língua das crianças que só se tornam fluentes quando vão para ensino estadual, após os seis anos. E como se aprende na aldeia? Por meio de brincadeiras. Quem vê de longe acha que é só diversão, mas na verdade elas sempre abordam elementos tradicionais importantes da cultura guarani.

“Sempre acho uma forma de brincar com eles, mas mostrando o porquê daquela brincadeira. Por exemplo: se a gente vai brincar da brincadeira da mandioca, eu aproveito para dizer que é um alimento tradicional e que ela é boa para nossa saúde. É um trabalho que fala não só do fortalecimento da nossa cultura, mas da importância de se alimentar de forma saudável”.

Escola, história e cultura Guarani

A habilidade de fazer artesanatos como arcos e flechas, colares, chocalho e cestos, assim como caçar e plantar também são ofícios bastante valorizados na escola indígena. São esses os principais assuntos das aulas de Luciano. “Para as atividades de culinária, plantio e preservação do meio ambiente, vamos com as crianças até a floresta, a horta e desenvolvemos tudo na prática.  A gente faz a atividade de plantio plantando milho, mandioca, mostrando a importância de preservar a mata e nossas águas.”

O carinho das crianças e dos pais com o professor mostram que ele está no caminho certo, como conta Ricardo Pires, pai de dois meninos, o mais novo deles aluno do Ceci. “As crianças não diferenciam o ensino da escola do aprendizado da nossa cultura. O que é passado aqui é pelo professor a base do conhecimento do nosso povo”, diz. “Lá fora as crianças nascem, crescem um pouco e vão para as creches e ficam lá o dia todo. Aqui não. A mãe acompanha o filho até os nove ou 10 anos. Pais e filhos não se separam”.

A escola atende crianças de zero a cinco anos. Não há divisão por turmas, por isso irmãos mais velhos se juntam aos mais novos e os bebês são acompanhados das mães. A merenda escolar fornecida pela prefeitura contém alimentos tradicionais da cultura Guarani como mandioca, batata doce e milho, que geralmente não são servidos nas outras escolas. 

“É muito importante que os educadores indígenas possam ensinar nos seus idiomas. É um direito constitucional e um reconhecimento da autonomia dos povos”, diz o especialista em educação no campo, André Lázaro. “A diversidade indígena no Brasil é enorme, a maior do mundo. São 305 etnias, mais de 270 idiomas e estão presentes em 80% dos brasileiros. Eles não são um assunto do passado, fazem parte do presentes e tem muito a nos ensinar sobre as relações sociais que estabelecem”.

Da garantia aos desafios

Toda estrutura do Ceci está alicerçada em um conjunto de leis e diretrizes que asseguram educação para as 305 etnias indígena do país. A principal delas é a Constituição Federal, que desde sua aprovação, em 1988 prevê que os indígenas tenham direito a um modelo próprio de educação, alinhado à sua cultura e em sua língua nativa.

Depois dela, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação e outras quatro diretrizes nacionais estruturaram as políticas de educação básica indígena e de formação de professores para essas escolas. A mais recente é o Plano Nacional de Educação Escolar Indígena, que está sendo elaborado pelo Ministério da Educação, por meio de conferências regionais.

Todo esse conjunto legal prevê, por exemplo, que a alimentação escolar e o calendário das atividades letivas deva ser adaptado para a realidade de cada etnia, incluindo por exemplo festas tradicionais como parte das atividades pedagógicas e ensino na língua materna indígena por professores indígenas.

Um dos principais marcos da educação indígena foi a migração das escolas da Fundação Nacional do Índio (Funai) para o Ministério da Educação (MEC), por meio de um decreto do poder Executivo de fevereiro de 1991. A mudança significou que, a partir daí todas as políticas escolares para os povos indígenas seriam pensadas unicamente no âmbito da educação.


Ouça a primeira reportagem da série


Edição: Paulo Donizetti de Souza


Educar tradicional

Série de reportagens conta a histórias de professores de São Paulo que lutam por uma educação de qualidade em territórios indígenas, caiçaras, quilombolas e rurais

A pandemia do novo coronavirus mudou a rotina das escolas de todo país. Desde março, professores precisam se reinventar diariamente para garantir educação de qualidade com desafios até então desconhecidas, que vão das aulas on-line a às avaliações a distância.

Um grupo de professores, no entanto, enfrenta desafios nada convencionais mesmo fora da pandemia. São os milhares de docentes que se propõem a lecionar nas comunidades tradicionais brasileiras.

Enfrentando longas jornadas de barco, jipes 4×4 e até morando em alojamentos na escola, esses profissionais abrem mão de suas casas, das facilidades dos centros urbanos e do contato diário da família em prol de um objetivo maior: garantir educação para quem mais precisa.  

“Tem dias que está chovendo, o mar está agitado e quando pensam que a professora não vem, eu já estou chegando ali. Mesmo que eu tenha que desembarcar em outra praia e vir a pé”, conta a professora Cristina Maria Teixeira, que leciona em uma sala multisseriada em uma comunidade caiçara de Ilhabela e vai de barco ao trabalho.

Desafios

O Brasil tinha 5,5 milhões de estudantes no campo em 2018, segundo dados do Anuário Brasileiro da Educação, publicado no último ano. Entre eles estão alunos de assentamentos rurais, comunidades quilombolas, indígenas, ribeirinhas, caiçaras e de diversos outros povos tradicionais do Brasil. “Daqui da minha mesa eu falo de diversidade, mas quando vamos para campo vemos que são diversidades e a educação precisa dar conta de todas elas”, defende André Lázaro, especialista em educação no campo.

Professores das escolas do campo enfrentam obstáculos que vão de um modelo de contratação sem concurso público a falta de infraestrutura. Ainda assim, esses professores eles estão lá, ajudando diariamente a manter e multiplicar a diversidade cultural do Brasil. São as histórias deles que o especial “Educar Tradicional” conta a partir de hoje, em uma série de reportagens com perfis de professores de escolas indígenas, quilombolas, caiçaras e rurais de São Paulo. Acompanhe toda terça-feira na RBA e na Rádio Brasil Atual.