rumo ao precipício

O que o ataque de Bolsonaro contra livros didáticos esconde?

Declaração do presidente pode ocultar tentativa de, futuramente, lotar livros de "conteúdo anticientífico, revisionismo histórico, teoria da conspiração, pregação religiosa, moralismo e preconceitos"

Capa de livro de Ruy Afonso da Costa Nunes, da editora Kirios
Capa de livro de Ruy Afonso da Costa Nunes, da editora Kirios
"Presidente provavelmente colocará os lunáticos da laia dele (e não pesquisadores) para avaliar as coleções produzidas pelas editoras"

São Paulo – “Os livros hoje em dia, como regra, são um montão de amontoado de muita coisa escrita. Tem que suavizar aquilo.” As palavras do presidente de extrema-direita, Jair Bolsonaro (sem partido), ganharam grande repercussão nas redes sociais e na imprensa nos últimos dias. O bolsonarismo, que ironicamente promove um escândalo sobre um suposto “partidarismo” no ensino, pode, na prática, tentar impor sua ideologia radical como única na educação brasileira.

Bolsonaro disse também que “a partir de 2021, todos os livros serão nossos, feitos por nós. Os pais vão vibrar. Vai estar lá a bandeira do Brasil na capa. Vai ter lá o hino nacional”. Aparentemente ele, bem como sua equipe, não possuem o conhecimento necessário sobre o tema para dissertar a respeito, como argumenta  a jornalista Sílvia Amélia, que atuou no Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale) e na Instituição da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde ajudou a criar o “Letra A”, um jornal para professores alfabetizadores brasileiro.

“Tudo é possível que este governo enfie nos novos livros didáticos, já que o presidente provavelmente colocará os lunáticos da laia dele (e não pesquisadores) para avaliar as coleções produzidas pelas editoras. E os donos de editoras mais inescrupulosos, interessados num pedaço desse orçamento bilionário, podem se adequar. E muito provavelmente os professores perderão a chance de escolher qual coleção usar”, argumenta, em artigo publicado na revista vitruvius.

Para a coordenadora do Comitê do Distrito Federal da Campanha Nacional Pelo Direito à Educação, Catarina dos Santos, o presidente se aventura em um campo sem o conhecimento adequado. “O presidente não tem condição nenhuma de analisar o material didático nas escolas. primeiro, Porque ele não tem formação para isso; segundo, porque ele não conhece esse material didático”, disse.


Catarina segue apontando o desconhecimento dos auxiliares do presidente em entrevista concedida hoje (8) à Rádio Brasil Atual. “Eles condenam Paulo Freire mas nunca leram. Condenam materiais didáticos. Falavam sobre kits que nunca existiram. O presidente faz avaliação de um material que não conhece. Quando ele fala que a escola precisa de livros suaves, material de colorir, afirma que a escola não precisa garantir educação de qualidade para as escolas públicas. Ao contrário, os livros são insuficientes, precisamos melhorar”, afirmou.

“É impossível conhecer esse país com livros de colorir”, afirma Catarina dos Santos

“Não dá para imaginar um país que respeite sua população, que respeite a diversidade, que conheça a riqueza que o Brasil tem sem uma população que conheça o país. É impossível conhecer esse país com livros de colorir. É muito importante que nós tenhamos acesso a bons livros, a uma boa educação”, completou.

Como é?

O governo brasileiro é o maior comprador de livros didáticos no mundo. Esse amplo mercado foi construído a partir de uma legislação implantada em 1985, o Plano Nacional do Livro Didático (PNLD). “Como esses livros são comprados? Por licitação, comparando preços, como pode se fazer ao comprar cadeira, carteira ou qualquer objeto? Não. Livro não se compra assim. O PNLD estabeleceu, ao longo dos anos, comissões de pesquisadores que realizavam uma análise minuciosa de todos os livros didáticos lançados pelas editoras. E a partir dai elaboravam pareceres”, explica.

Após tal parecer, os livros didáticos ainda passam pelo crivo de professores em cada escola. Isso permite ao programa uma adaptação regional, além de impedir a “imposição de ideologias”, tal como Bolsonaro agora pretende. “Não tinha imposição do governo, nem algo que possa chamar de ‘viés ideológico’, já que em cada lugar uma coleção de livros diferente podia ser adotada. Inclusive os professores eram livres para ignorar os livros mais bem classificados pelos pesquisadores e escolher uma coleção que considerassem mais fácil de usar. E isso acontecia muito”, completa a jornalista.

Futuro sombrio

A ideologia bolsonarista tem concepções no mínimo questionáveis. Gurus de membros do governo chegam a questionar até mesmo se a Terra é redonda, ou se mudanças climáticas são reais. O viés ultraconservador também ameaça a boa educação laica. “É triste demais que a qualidade desses livros esteja tão perigosamente ameaçada. Inclusive de passar a conter conteúdo anticientífico, revisionismo histórico, teoria da conspiração, pregação religiosa, moralismo e preconceitos.”

Interesses ocultos

Para a especialista, ainda podem existir interesses comerciais nessa guinada ao obscurantismo nos livros didáticos. “Estejam atentos que Bolsonaro faz isso não só para impor o seu ‘viés ideológico’ (que seriam livros sem o que ele chama de ideologia de gênero e com muito patriotismo), mas também para enriquecer parceiros com ligação direta com editoras e outras megaempresas na área de educação. Tem gente com muita grana por trás dessa conversa fiada do presidente de que os livros didáticos brasileiros são ‘lixo’.”

E se fosse o Lula?

O historiador e cientista político Roberto Bitencourt da Silva fez uma provocação em texto publicado pelo Jornal GGN. E se fosse o ex-presidente Lula, um líder operário, a dizer que “livros são um montão de amontoado de coisa escrita”? “Dizer que seria motivo de chacota entre as burguesias internas e razão para enorme preocupação entre as faixas mais humildes, populares ou altas dos trabalhadores e mesmo entre dilatas franjas da pequena burguesia, seria dizer o mínimo”, escreveu. “Interessante no caso do livro didático é que esse tipo de observação feita pelo reacionário e entreguista presidente tende a não alterar, em absolutamente nada, a opinião formada pelas classes dominantes e por significativas faixas dos estratos médios da nossa sociedade.”