Com viés ideológico

Militarização das escolas pode confundir educação com segurança pública

Para especialistas, política defendida pelo governo de Jair Bolsonaro não resolve os problemas da educação, custa caro e vai na contramão das metodologias discutidas em todo o mundo

Marco Vieira/Cenpec

Cenpec: ‘a missão da escola é prover educação e não resolver problemas de segurança pública’

São Paulo – A ideia de militarização das escolas passa a mensagem de um modelo disciplinar ideológico, que remete à rigidez hierárquica e à restrição de liberdades. Um modelo contraditório com as metodologias educacionais mais modernas em debate no mundo, que recomendam a participação, colaboração e envolvimento das escolas com os territórios onde estão inseridas. A avaliação é de especialistas em educação que assinam nota técnica sobre o tema, lançada ontem (12), pelo Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec). 

No documento, eles elencam questionamentos ao projeto defendido pelo governo de Jair Bolsonaro (PSL) e preocupações quanto à condução pedagógica e curricular de escolas públicas por militares. Em 2 de janeiro, dia seguinte à posse, foi publicado o Decreto 9.465/2019, que alterou a estrutura do Ministério da Educação (MEC) e criou a Subsecretaria de Fomento às Escolas Cívico-Militares. A função é “promover, fomentar, acompanhar e avaliar, por meio de parcerias, a adoção por adesão do modelo de escolas cívico-militares nos sistemas de ensino municipais, estaduais e distrital”.

De acordo com os especialistas, o decreto não detalha as características do novo modelo de escola, embora em seu artigo 16 deixe claro que os programas didático-pedagógicos e o sistema de gestão serão desenvolvidos pela subsecretaria. Quatro escolas públicas do Distrito Federal, com cerca de 7 mil alunos no total, passou a fazer parte de um projeto-piloto que inclui militares na gestão. A Secretaria de Educação fica responsável pela área pedagógica, enquanto militares assumem a administração e a disciplina.

A maneira como se daria essa relação entre escola e militares nos territórios de extrema desigualdade social e alta vulnerabilidade é um dos questionamentos. “É impossível desconsiderar que a missão da escola é prover educação e não resolver problemas de segurança pública. O confinamento compulsório dos estudantes em espaços militarizados e a imposição a eles de um modelo disciplinar que não é o mesmo da vida civil é política educacional ou de segurança?”, perguntam os autores.

A nota técnica aborda ainda a discrepância entre os orçamentos destinados a escolas civis e militares e as demais. Enquanto o Estado gasta anualmente, em média, R$ 19 mil por aluno da escola militar, empenha três vezes menos no aluno na escola pública civil – apenas R$ 6 mil/ano.

Ainda segundo os autores, qualquer política pública, em especial para a educação, deve ser clara quanto ao objetivo a ser alcançado. “Todo argumento que favoreça a qualidade da educação é bem-vindo, mas é indispensável observar se a busca pela qualidade não resultará no aumento das desigualdades educacionais, já tão alarmantes no nosso país, e considerar se a disciplina visada no ambiente escolar deve ser buscada com mentalidade e práticas autoritárias.”

Confira a íntegra da nota:

Militarizar não resolve problemas da escola pública

Ao associar a militarização das escolas públicas ao sucesso de aprendizagem dos alunos, seus defensores incorrem em afirmações que demonstram desconhecimento dos sistemas de educação pública. As características determinantes da qualidade das escolas militares não se aplicam, necessariamente, ao contexto das escolas públicas civis. O melhor desempenho de seus estudantes, na comparação com os alunos da rede pública, não decorre necessariamente de suas metodologias.

Não é raro ouvirmos que a escola pública de antigamente era melhor. Como não havia vaga para todos, os exames de seleção e de admissão acabavam por filtrar, entre os interessados, aqueles que tiveram melhores condições de aprender, desenvolver-se e ampliar o repertório cultural. Uma vez selecionado, o grupo formado pelos alunos com esse perfil acabava por se constituir numa clientela de excelência. As escolas de qualidade tornavam-se um privilégio para poucos.

A obrigatoriedade do ensino gratuito para todos, determinada pela Lei nº 12.796, de 4 de abril de 2013, impôs uma nova realidade. Os sistemas de ensino devem receber, sem distinção, qualquer estudante. Seus pais ou responsáveis são cobrados quanto a essa obrigação. As salas de aula do ensino civil são abertas a todo e qualquer cidadão, sem distinção de raça, classe social e, mais recentemente, deficiências – mas, se a lei eliminou o funil da seleção, ela trouxe consigo o desafio de compatibilizar a universalização do acesso com a qualidade de ensino.

A expansão obrigatória impactou seriamente os custos da educação pública. Para atender à demanda, a rede de atendimento teve que se organizar muito rapidamente e ainda enfrenta enormes dificuldades, em razão do grande salto de escala na prestação de seus serviços.

Para melhor compreensão do desafio que é prover educação a todo brasileiro dos 4 aos 17 anos de idade, como obriga a lei, considere-se que, entre 1960 e 1990, a escolaridade média da população brasileira foi de 2 anos para 5 anos. Entre 1970 e 1994, com o crescimento populacional do período, o atendimento escolar por faixa etária quase duplicou, percentualmente. A absorção dessa enorme massa de estudantes exigiu a construção de muitas salas de aulas, a compra de muitas carteiras e a contratação de muitos professores. Eram 90 milhões de habitantes no Brasil de 1970. Em 1994, já atingiam 160 milhões. Hoje, são mais de 208 milhões.

O cenário de crescimento exponencial exigiu uma organização sem precedentes do sistema educacional. Da formação de professores e capacitação de gestores até a produção de materiais de ensino e o provimento de uniformes e de transporte escolar, tudo foi impactado. O fato é que, hoje, a escola pública tem que estar preparada para atender aproximadamente 50 milhões de estudantes, distribuídos em 150 mil escolas. Toda a responsabilidade pela gestão desse sistema está a cargo dos estados e municípios, por meio de suas secretarias de Educação, que têm autonomia para definir as formas como cumprirão a obrigatoriedade legal.

Já as escolas militares têm uma situação absolutamente distinta. Embora presentes nos estados e municípios, estão subordinadas ao Departamento de Educação e Cultura do Exército – um ente federal. Foram criadas, prioritariamente, para prover educação básica aos dependentes de militares. Estudantes que não estejam nessa condição são selecionados por meio de um concurso público, a partir do 6º ano do Ensino Fundamental. Cerca de 22 mil concorrentes, entre civis e dependentes de militares, disputam anualmente as vagas disponíveis. No total, perto de 15 mil estudantes frequentam os bancos das 13 escolas militares existentes.

Essa breve comparação entre os dois modelos já suscitaria desconfiança sobre a viabilidade dos programas de militarização das escolas públicas. Em análise mais aprofundada, compreende-se que a qualidade da educação oferecida pelas escolas militares é decorrente de um conjunto de fatores, na maioria das vezes ausentes nas escolas públicas. A começar do orçamento. Enquanto o Estado gasta anualmente, em média, R$ 19 mil por aluno da escola militar, empenha três vezes menos no aluno na escola pública civil: apenas R$ 6 mil/ano.

Por outro lado, a melhoria da escola pública já tem um rumo traçado. Está confirmado, por inúmeras pesquisas, que a quantidade adequada de alunos por docente, os processos seletivos e os regimes de dedicação docente exclusiva representam um ganho de qualidade educacional. Os programas de escolarização em tempo integral, que vêm sendo realizados em diversos estados, confirmam diariamente essa tese.

Se o caminho virtuoso já está aberto, que ganho teria a sociedade brasileira com a militarização da escola pública? Militarizar corresponderia a “transformar” as escolas públicas nos modelos já existentes das escolas militares? Isso é viável? É desejável?

Outra questão a ser respondida é: sob qual “comando” ficariam as escolas, numa possível militarização? Devemos observar que, na forma como o sistema educacional está definido em lei e organizado, a possível militarização implicaria em mudanças legislativas. Elas impactariam não somente os orçamentos federais, estaduais e municipais, como toda a organização das redes de ensino, o que envolve desde a gestão da infraestrutura (manutenção e construção de prédios, aquisição de materiais etc.), passando pela formação continuada dos docentes, avaliação e monitoramento, e desaguando nos sistemas que regem as carreiras – de educadores e agentes educacionais. Sempre considerando que o sistema educacional público tem por obrigação não deixar de atender nenhuma criança ou jovem. Portanto, não lhe é permitido selecionar estudantes.

Vale ressaltar ainda que estados e municípios têm autonomia para definir seus currículos, a partir de seus Planos de Educação. Como isso seria tratado, no novo modelo? Sob quem ficaria a responsabilidade pela definição e implementação curricular? A proposta de militarização das escolas públicas não deve se esquivar de responder, objetivamente, sobre a profunda transformação que ela implica.

Há que se destacar, finalmente, que a ideia de militarização das escolas passa a mensagem de um modelo disciplinar ideológico, que remete à rigidez hierárquica e à restrição de liberdades. Um modelo contraditório com as metodologias educacionais mais modernas em debate no mundo, que recomendam a participação, colaboração e envolvimento das escolas com os territórios onde estão inseridas. O território das 13 escolas militares é, de certa forma, conhecido e controlado por elas, uma vez que o perfil dos pais dos estudantes – militares, na sua maioria – está alinhado aos objetivos das escolas.

No entanto, como se daria essa relação entre escola e militares nos territórios de extrema desigualdade social e alta vulnerabilidade? É impossível desconsiderar que a missão da escola é prover educação e não resolver problemas de segurança pública. O confinamento compulsório dos estudantes em espaços militarizados e a imposição a eles de um modelo disciplinar que não é o mesmo da vida civil é política educacional ou de segurança?

Espera-se de qualquer política pública, em especial para a educação, respostas claras sobre o objetivo a alcançar. Todo argumento que favoreça a qualidade da educação é bem-vindo, mas é indispensável observar se a busca pela qualidade não resultará no aumento das desigualdades educacionais, já tão alarmantes no nosso país, e considerar se a disciplina visada no ambiente escolar deve ser buscada com mentalidade e práticas autoritárias.

Qualidade, quando oferecida para poucos, é somente privilégio. Disciplina imposta sem diálogo é mera obediência. O desafio brasileiro está em garantir o direito à educação para todos, na idade certa, em escolas bem equipadas, com professores preparados e valorizados, ambiente de ampla liberdade de pensamento e expressão – e a melhor qualidade pedagógica possível.