novos valores

Bienal da UNE: Bolsonaro acabou com o ministério, mas não com a cultura

No encontro organizado pelo movimento estudantil em Salvador, especialistas defendem que setores progressistas priorizem políticas culturais 'paralelas', como forma de vencer a narrativa conservadora

Karla Boughoff/CUCA DA UNE

Ivana Bentes: ministério ‘paralelo’ para difundir diversidade cultural como forma de luta contra retrocessos das pautas conservadoras

Salvador – Após a extinção do Ministério da Cultura e o consequente retrocesso das políticas públicas conquistadas nos últimos anos, ativistas do setor defendem a cultura como fio condutor da resistência contra os ataques a direitos da população pelo governo de Jair Bolsonaro. O tema foi debatido neste sábado (8), em mais um dos painéis da programação da 11ª Bienal da União Nacional dos Estudantes (UNE), em Salvador, capital da Bahia.

Ivana Bentes, diretora da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO/UFRJ), ressaltou que o debate sobre as culturas LBGT, feministas e identitárias devem ser consideradas importantes para a esquerda renovar o discurso político. Na sua avaliação, não se deve tratar a ministra de Direitos Humanos, Damares Alves, como um mero personagem, cujo papel seria o de polemizar a sociedade acerca de temas comportamentais – como educação sexual nas escolas, descriminalização do aborto e outras – enquanto as pautas ultraliberais do governo Bolsonaro avançam no Congresso. “Fala-se que (o discurso conservador de Damares) é uma ‘cortina de fumaça’, mas a direita ganhou a eleição no campo comportamental, discutindo valores. A gente está perdendo o round da guerrilha no campo cultural”, critica ela.

Ivana, que fez parte da Secretaria de Cidadania e Diversidade Cultural, do Ministério da Cultura no governo Dilma, afirmou que a meta dos setores fundamentalistas é criar uma monocultura fomentada pelo discurso de ódio e conservador. Ela sugeriu ainda a criação de um “ministério da cultura paralelo ao oficial”. “A gente precisa pensar nas políticas culturais que pararam no golpe de Temer e agora, com a eleição de Bolsonaro. Nós não comandamos mais a máquina do Estado, então vamos articular um ministério paralelo. Eles extinguiram o ministério, mas não extinguiram a cultura”, declarou.

Karla Boughoff/CUCA DA UNE
O trabalho de Gil, no ministério da Cultura, foi elogiada por Manoel Ranger, ex-presidente da Ancine

Futuro

Juan Leal, produtor cultural e diretor da Escola de Teatro Popular (ETP), afirmou que a cultura precisa fazer frente ao governo federal. Para isso, deve romper com a “lógica da indústria cultural” e conversar direto com a classe de baixa renda.

“É fundamental romper a lógica da indústria cultural, que separa a arte da política. Tudo que é político é feio para essa indústria e o capitalismo se apropria dos nossos debates. Não dá para a produção usar a arte como mercadoria. A mercantilização das artes é a separação dos nossos valores. Compreender o processo como alvo central para contrapor ao sistema dado. Ela precisa ser anticapitalista, coletiva e inteiramente livre”, protestou.

Participante da mesa, a deputada federal reeleita Jandira Feghali (PCdoB-RJ) celebrou a presença dos 10 mil estudantes na bienal e disse estar revitalizada para combater no Congresso Nacional os retrocessos propostos pelo atual governo e avaliou o impacto do avanço neoliberal sobre os movimentos e governos progressistas. “A nossa derrota é política, ideológica e cultural. Nesse aspecto, não é só da arte, mas do comportamento. No neoliberalismo, o centro é o indivíduo consumidor e competidor. Essa competição é levada ao extremo e mercantiliza a vida. Ou seja, o indivíduo vive numa disputa permanente em qualquer ambiente. Isso é uma cultura e valores que se estabelece na vida cotidiana.”

Do céu ao inferno

O ex-presidente da Agência Nacional do Cinema (Ancine) Manoel Rangel lembrou que, durante os mais de 500 anos do Brasil, o país viveu poucos momentos em que as políticas culturais estiveram sob comando de uma gestão democrática. De acordo com ele, o principal período foi durante as gestões de Gilberto Gil e Juca Ferreira, quando comandaram a pasta da Cultura nos governo Lula e Dilma. “Eles pensaram no crescimento do Brasil, com um viés democrático, em conjunto com o povo, abrindo espaço para todas as manifestações. Saíram da lógica da cultura de mercado e recolheram tudo que havia de criativo no país”, lembrou.

O trabalho de Gil, um dos homenageados da Bienal da UNE, foi celebrado pelo ex-presidente da Ancine. “Foram diretrizes que orientaram uma ação criadora, ousada e inovadora, que mostrou uma população plural e diversa. Houve uma política nacional para o cinema e audiovisual, até museus. Houve uma visão transformadora sobre patrimônio brasileiro, como (foi o caso da) capoeira”, disse ele, ao citar o registro, em 2008, da arte marcial afro-brasileira como patrimônio imaterial brasileiro.

O especialista lamentou os retrocessos na liberdade de expressão e criação dos artistas. “Algo que parecia ter acabado quando derrotamos a ditadura civil-militar”, lamentou, ao lembrar da censura da exposição Queermuseu.

“O financiamento à cultura desapareceu. Agora está a a cargo do marketing e dos incentivo fiscal de empresas privadas. Abandonou-se o projeto de um Brasil produtor de cultura no mercado interno e internacional. Os gestores públicos renunciaram à política cultural e deixaram de valorizar nossas criações”, completou.