Resistência

Bienal da UNE começa com Gil e chamado à união e reconstrução

Festival cultural e político estudantil vai até o próximo domingo (10), na Universidade Federal da Bahia, e contará com a presença de quase 10 mil jovens, formadores da resistência ao conservadorismo

CUCA/UNE

Brilho no olhar dos quase três mil presentes no evento dividiram o protagonismo com o homenageado da noite: o músico e ex-ministro da Cultura, Gilberto Gil

Salvador – Ao se deparar com a energia nas ruas em volta do Teatro Castro Alves, em Salvador, onde foi oficialmente aberta a 11ª Bienal da União Nacional dos Estudantes (UNE), na noite de quarta-feira (6), não dá para crer que a pauta reacionária e de ódio saiu vencedora da última eleição. Numa fila extensa e que dobrava o quarteirão, músicas, batuques e sorrisos mostravam que é a juventude que estará na linha de frente para resistir aos retrocessos, reconstruir a unidade e fortalecer as esperanças.

Apesar da luta, há tempo de festejar, como diz a estudante Jéssica Noronha da Costa, da Universidade Federal de Sergipe (UFS), que cita uma frase da militante Olga Benário, morta em 1942. “Ela dizia que, ‘em momentos difíceis, é preciso pensar em alguma coisa bonita’, e esta Bienal da UNE é isso. Um ponto de alegria em meio ao caos”, afirma.

O brilho no olhar dos quase 3 mil presentes ao evento de abertura dividiram o protagonismo com o principal convidado da noite: o músico e ex-ministro da Cultura Gilberto Gil, que foi especialmente homenageado pelos estudantes.

A 11ª edição da Bienal, que vai até o próximo domingo (10), tem como tema Gil, um reencontro com o Brasil,  e faz uma celebração da vida e obra do artista. A bienal também celebra os 20 anos de sua primeira edição, justamente na capital baiana, realizada em 1999.

A programação anuncia como convidados políticos, artistas e intelectuais, e a organização prevê a participação de cerca de dez mil estudantes de todo o Brasil. O Campus Ondina, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), receberá oficinas, mostras estudantis, mesas de debate políticos e culturais, além de shows e blocos de carnaval.

A grade foi montada pela UNE, com a União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes) e a Associação Nacional de Pós-Graduandos (ANPG).

Abertura

O início do festival demonstrou que a resistência à conjuntura conservadora que chegou ao poder é o mote principal dos estudantes. Logo na abertura, os porta-vozes das entidades lembraram da simbologia de Salvador para a luta do movimento. “Aqui aconteceu o Congresso de reconstrução da UNE, quando a juventude enfrentou a ditadura. Agora, não será diferente”, lembrou Jessy Dayane, vice-presidenta da entidade, ao citar o 31° Congresso Geral da UNE, em 1979, chamado “Congresso da Reconstrução”.

Em harmonia, a mensagem dada por todos é direta: é preciso ter união. Para eles, a UNE será a grande expressão da resistência. “Caso contrário, nem um dos dez mil tinham saído de casa”, afirmou Jessy. “O povo acabou de ser derrotado nas eleições e, meses depois, se reúne na Bahia, local de resistência do povo preto. A gente vem aqui dizer para tirarem as mãos da educação. Só com unidade e resistência enfrentaremos essa maré dura e dolorosa. Rumo à vitória, vamos criar uma Bienal com muita luta e arte”, acrescentou.

Ainda durante a abertura, a secretária de Cultura da Bahia, Arany Santana, e o vice-reitor da UFBA, Paulo Miguez, foram homenageados e discursaram. Em um dos momentos mais emocionantes do evento, Miguez colocou no peito o seu crachá de integrante do Diretório Central dos Estudantes da UFBA. “Deposito aqui a esperança em cada um de vocês, que têm o dever de proteger a universidade pública brasileira”, disse.

CUCA/UNE
Pelos feitos, o ex-ministro foi presentado com um quadro feito por Elifas Andreato

Homenagem a Gil

Na concepção do movimento, a extensão da figura de Gilberto Gil é o que conduz a Bienal. Por meio do tema Disposições Amoráveis – o mesmo que dá título ao livro de Ana de Oliveira, mediadora da abertura – os estudantes mostram como a ciência, a arte e a política dialogam com Gil e sua obra. “Sou contemporâneo da UNE. Muito da minha formação e capacidade de compreensão da dimensão cidadã, é por conta da militância da UNE”, disse o cantor.

Conversando com a juventude por quase duas horas, Gil apresentou reflexões provocativas sobre o momento do Brasil e a necessidade de reencontro do país consigo mesmo. Ao ser questionado sobre o futuro do mundo, ele apontou dois cenários: a revolução ou o fim de tudo.

Possivelmente estamos vivendo um momento definitivo para a sociedade. As dificuldades que a humanidade passa, nós podemos perceber dois encaminhamentos: ou vamos para um levante de proporções inimagináveis, por conta das injustiças sociais e desigualdade, ou vamos para algo mais terrível, que seria o adoecimento definitivo do planeta. Há sinais para as duas situações”, afirmou.

Para Gil, a sociedade brasileira pode consolidar uma verdadeira democracia racial e menos desigual. Entretanto, para concretizar isso, é necessário que o país “deixe de copiar modelos civilizacionais já existentes”, citando a Europa e a América do Norte como exemplos.

“A nossa esperança é de que o país esteja vocacionado e impulsionado a ocupar esse lugar e entregar ao planeta uma civilidade completa, com pluralidade de raças, com a capacidade de percepção através da palavra. O resto do mundo têm uma expectativa para que o Brasil crie um reinício para a civilização do homem”, diz.

Ele ainda acrescenta que a ascensão do discurso de ódio é a expressão de rejeição das elites contra esse caminho possível para a sociedade brasileira. “É uma gente que quer a repetição da convencionalidade, seja no poder ou costumes. Eles não querem que o Brasil vá mais adiante e seja libertado, mas contemplado com mais do mesmo”, lamenta.

O cara

“Revolucionário”. é assim que o músico baiano era definido na maioria das conversas entre estudantes da plateia. Ao lado de Caetano Veloso (e outros), Gil foi figura central do Tropicalismo, durante a década de 1960. Com inovações estéticas, o movimento é considerado uma ruptura dentro do ambiente da música popular brasileira, à qual acrescentou novas informações e referências de seu tempo, como o rock e a guitarra elétrica.

Por força da conjuntura política desfavorável, a partir da promulgação do Ato Institucional N˚ 5 (o AI-5), em 1968, Gil e Caetano deixaram o país e se exilaram em Londres. “Era inovador, desafiador, rejeitando a submissão dos padrões. A gente reivindica a nossa visão sobre a realidade e impõe isso, mas quando alguém surge diferente cria-se uma rejeição”, lembrou o artista.

Ainda segundo o próprio Gil, o Tropicalismo deixou um lastro de intersecções culturais e políticas. “Mostramos a importância da ecologia, a compreensão sobre os povos indígenas. Hoje, vocês são mais experimentados e era isso que queríamos com aquele movimento, ou seja, expandir a compreensão sobre o Brasil e o mundo. Hoje temos uma herança tropicalista”, acrescenta.

O artista baiano não fez só história nos palcos, com seu violão. Em 1988, elegeu-se vereador em Salvador, a cidade natal. Já em 2003, nomeado ministro pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, “fez o Ministério da Cultura existir”, como define o diretor e dramaturgo Augusto Boal, à Carta Maior. O mandato de Gil é considerado uma ampliação da compreensão de políticas culturais no Brasil.

Enquanto esteve à frente do ministério, Gil criou o Plano Nacional de Cultura (PNC), que visava o planejamento e implementação de políticas públicas para promover a diversidade cultural, artística e étnica. Ainda durante a sua gestão, o Minc criou um programa direcionado à população afro-brasileira, com ações direcionadas ao desenvolvimento das comunidades de tradição afro-brasileira, inclusive as comunidades remanescentes de quilombos e os terreiros.

Um dos maiores marcos foi o programa Mais Cultura, que garantiu mais condições para que a diversidade cultural brasileira pudesse se manifestar em sua plenitude. Através da política, entre 2007 e 2010, foram investidos quase R$ 5 bilhões no setor, além da criação do Vale-Cultura.

Os Pontos de Cultura também foram outro avanço criado na gestão de Gilberto Gil e Lula. Considerado inovador, o projeto prioriza a descentralização das ações, a gestão compartilhada e a transversalidade das políticas públicas culturais. O primeiro edital, lançado em julho de 2004, selecionou 210 projetos. Considerado o carro-chefe na área cultural do governo Lula, a política viu seu orçamento, que em 2004 era de R$ 4 milhões, chegar a R$ 216 milhões em 2010 – último ano de Lula na Presidência.

Pelos feitos, o ex-ministro foi presenteado com um quadro feito por Elifas Andreato, outro homenageado na noite – o ilustrador de diversas capas de álbuns musicais, é dono de um traço poético, tornando-o ícone de uma geração que protestava, por meio da arte, contra o governo militar.

Ao final, a presidenta da UNE, Marianna Dias, dedicou a bienal e o Circuito Universitário de Cultura e Arte, o Cuca, ao ex-ministro, e ainda o convidou para ser patrono dos circuitos. “A nossa experiência de cultura mais larga dos 80 anos da UNE, que tem uma relação profunda com o conceito de antropologia da cultura, foi com você no ministério”, finalizou.

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