Denuncismo

Intimidação macartista vira rotina na universidade, diz Giorgio Romano

Segundo professor da UFABC, cultura do denuncismo na instituição já faz parte do dia a dia dos docentes. Em nota, reitoria diz que não há processo em andamento, mas 'uma sindicância investigativa'

ROBERTO PARIZOTTI

Romano: “O corte drástico das verbas é que está matando a universidade. Está virando um espaço da elite”

São Paulo – Em nota oficial divulgada na tarde desta quarta-feira (25), a Reitoria da Universidade Federal do ABC (UFABC) afirmou que acompanha “atentamente os desdobramentos referentes à denúncia encaminhada à Corregedoria” contra os professores da instituição Giorgio Romano Schutte, Gilberto Maringoni e Valter Pomar. Eles são objeto de uma comissão investigativa para apurar denúncia anônima sobre o evento de lançamento do livro A verdade vencerá, realizado em 18 de abril no auditório 5 do bloco Beta do campus São Bernardo do Campo. A obra reúne uma entrevista com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e artigos a seu respeito.

Segundo a Reitoria, não há processo administrativo (PAD) nem “sindicância acusatória” em andamento contra os docentes. “Trata-se de uma sindicância investigativa, estágio prévio para a deliberação sobre a admissibilidade ou não da denúncia.” A nota explica que a Reitoria tomou conhecimento do assunto e do teor das questões apenas quando da divulgação por servidores da universidade, e passou a acompanhar o tema.

De acordo com Giorgio Romano Schutte, professor de Relações Internacionais e Economia da UFABC, a cultura do denuncismo na instituição já faz parte do dia a dia dos docentes. Quando aparece uma denúncia como essa, invariavelmente relacionada a evento envolvendo temas ou convidados de esquerda, ela é encaminhada à Corregedoria da universidade e mesmo ao Ministério Público (MP). É tão comum que muitas vezes o “denunciado” nem fica sabendo. Giorgio Romano já foi objeto de processos no passado com origem semelhante, que, inclusive, tiveram desdobramentos no MP.

No caso em questão, ele diz que a “escolha” dos três professores não é muito evidente, já que  o evento foi organizado por Giorgio e Maringoni (um dos autores do livro), mas Pomar não estava na organização e sequer participou do evento.

Porém, do ponto de vista jurídico, casos como esse não têm fundamentos que justifiquem a abertura de processo e geralmente são arquivados. Em relação ao atual episódio, ainda não é sequer um processo, pois não há uma acusação formalizada.

Library of Congress
Joseph McCarthy, que instaurou uma política de caça às bruxas nos EUA dos anos 1950

“Pessoas de dentro da universidade sempre querem criar um clima de intimidação, frear iniciativas. É macartismo puro. Só que nos Estados Unidos tinha um nome, Joseph McCarthy, e aqui é denúncia anônima”, observa Giorgio Romano, em referência à política de caça às bruxas instaurada e inspirada pelo senador norte-americano por Wisconsin nos anos 1950. 

“O que deveria prevalecer na universidade é a cultura do debate e do confronto de ideias, a essência da universidade. Denunciar alguém por um evento no qual foram faladas coisas com as quais você não está de acordo é a negação da universidade”, diz o professor.

A UFABC passa por um momento de transição. O professor Dácio Roberto Matheus tomou posse no cargo de reitor no dia 1° de junho. Na nota, a instituição afirma que “a Reitoria reforça os preceitos democráticos como elementos indissociáveis da gestão universitária e reitera seus esforços para garantir que a universidade se mantenha como local de amplo debate e respeito à diversidade de ideias e de posicionamentos”. Por outro lado, “reconhece o fundamental papel social dos órgãos de controle e entende que as ações destinadas às instâncias responsáveis devem ser conduzidas com autonomia”.

Giorgio destaca, porém, que, apesar da cultura do denuncismo estar se disseminando e isso ser um fato grave, sob uma perspectiva mais ampla, o que está sufocando a universidade não é bem isso. “O corte drástico das verbas é que está matando a universidade, tirando as bolsas, e os alunos de baixa renda não conseguem se manter. Está virando um espaço da elite, exatamente o contrário do projeto original da expansão das universidades federais. Não ter dinheiro para a pesquisa significa que não tem sentido ter uma universidade federal.”

Segundo ele, o episódio recente pode ser uma oportunidade para politizar o tema e criar uma “onda” contra a cultura de caça às bruxas e denuncismo. Esse denuncismo é utilizado, inclusive, por motivos mais prosaicos do que criar problemas para professores de esquerda: alunos que se utilizam desse expediente para prejudicar docentes dos quais recebem notas ruins, por exemplo.

Na nota, a Reitoria afirma sua defesa da “convivência pacífica e a transparência dos órgãos controladores e a liberdade de produção e difusão de conhecimentos pela comunidade, que são expressões da autonomia universitária”. Sobre a identificação dos denunciantes, a UFABC destaca a importância “de se preservar a identidade como forma de proteção dos atores envolvidos”, mas  manifesta “preocupação com a cultura de denúncias anônimas nos casos em que o diálogo pouparia desgastes nas relações interpessoais e renderia debates frutíferos à universidade”.

“A busca de soluções democráticas para os problemas nacionais é uma das finalidades da UFABC, e para isto o diálogo é o mecanismo prioritário”, acrescenta. Destaca ainda que a cultura de denúncias anônimas pode ser substituída pela “prática do diálogo franco, maduro e respeitoso às diversidades”.

“O anonimato deve proteger o denunciante, quando isso se faz necessário, mas essa premissa não deve ser utilizada para gerar instabilidade institucional e degradar as relações humanas e de trabalho. O caso atual trouxe à tona a necessidade de amadurecer este debate e a Reitoria está comprometida em colocá-lo em pauta”, conclui a nota.

Questionamentos

Giorgio Romano, Pomar e Maringoni receberam da comissão, em seus “correios eletrônicos”, pedido de esclarecimentos com as seguintes questões, para serem respondidas “preferencialmente” até 26 de julho:

1- O senhor participou da organização do evento A verdade vencerá,
realizado nas dependências da Fundação Universidade Federal do ABC?
2- É de seu conhecimento quais pessoas participaram da organização do evento A verdade vencerá, realizado nas dependências da Fundação Universidade Federal do ABC?  Poderia dizer o nome de outros organizadores
3- Quais foram os objetivos da organização de tal evento?
4- A realização do evento foi autorizada por algum servidor? Se sim
por quais?
5- O  uso do espaço da UFABC (sala, anfiteatro,etc.) foi autorizada por algum servidor? Se sim por quais?
6- Houve venda de livros durante o evento?
5- A venda de livros foi autorizada por algum servidor?
7-Durante o evento houve apologia ao crime?
8- Durante o evento ocorreram manifestações de apreço por parte de
servidores em horário de serviço a favor de Lula e partidos de
esquerda?
9-  Durante o evento ocorreram manifestações de desapreço e contra o Presidente Temer e integrantes do poder judiciário-MP?

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