Mordaça

‘Escola sem Partido dificilmente será lei, mas está consolidada’, diz Daniel Cara

Em conflito com a Constituição, proposta não é consenso na Câmara e deverá ser alvo de questionamentos no Supremo Tribunal Federal. Mas ganha cada vez mais espaço na sociedade

RBA

Para autores, ficção em torno do doutrinador “cola” apenas para aqueles que não abrem espaço para o diálogo

São Paulo – Apesar de ganhar força e espaço nos debates no Congresso, o projeto de lei que cria o programa Escola sem Partido (PLS 193/2016) dificilmente será aprovado. Mesmo assim, é preocupante que seu conteúdo pareça já estar consolidado na sociedade. A avaliação é do coordenador geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Daniel Cara, que ontem (3) à noite, em São Paulo, participou do debate que marcou o lançamento do livro A Ideologia do Movimento Escola sem Partido. Ele é um dos 20 autores dos textos que compõem a obra editada pela organização Ação Educativa. A obra traz ainda Frei Betto, Moacir Gadotti, Toni Reis, Roberto Catelli Junior, Salomão Ximenes e Leonardo Sakamoto, entre outros.

“O projeto será alvo de questionamentos no Supremo Tribunal Federal (STF) porque é danoso para uma sociedade democrática, embora seja difícil falar em democracia hoje no país, e também porque conflita com a Constituição. Por isso terá dificuldades para se tornar lei e se manter apesar de vir se fortalecendo no Congresso, onde o projeto está sendo debatido. Além disso, sabemos que na Câmara há 188 deputados a favor, mas no Senado ainda não sabemos quem é favorável”, disse.

Segundo ele, o preocupante é a consolidação na sociedade do discurso da neutralidade. “O educador Paulo Freire, muito combatido até mesmo por quem não conhece seu trabalho e pensamento, dizia que os professores não podem se esconder atrás de uma certa neutralidade que não existe. Com a Escola sem Partido, há a volta de outros grupos conservadores. Estive há pouco tempo em Cascavel, no Paraná, onde a TFP (Tradição, Família e Propriedade) voltou a se assumir como grupo, com o lema ‘meus filhos, minhas regras’. E fui procurado por um professor de Ferraz de Vasconcelos que está sendo ameaçado por ‘não ter uma visão ampla dos fatos’. Nesse caso,  por um pai de aluno, para quem faltou discutir o lado bom do nazismo. Vi também manifestação de um professor que se dizia militante do movimento (conservador) num instituto federal de educação tecnológica no Espírito Santo.”

Para Daniel, o problema é que essas questões são apresentadas sempre com ódio e ressentimento. “A vida virou uma timeline de rede social, onde as pessoas não têm vergonha de expressar o ódio. Temos de criar um discurso racional contra esse e outros absurdos. Há quem, se dizendo neutro e com visão ampla, procure algo de positivo no nazismo, no racismo, no sexismo ou mesmo na PEC 55. Como pode ter algo de bom o que trará o fim da primazia dos direitos sociais?”

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A professora de Filosofia Luiza Coppieters associou o movimento da Escola sem Partido ao avanço neoliberal que, segundo ela, visa a  completa privatização da educação. “Por trás da neutralidade há a racionalidade perversa para fortalecer a concepção de indivíduo como uma empresa, um empreendimento. É uma lógica em que debates e reflexões não têm espaço, e sim estratégias e dicas inclusive para a empregabilidade. Não é a toa que dão motor para toda essa discussão corporações do ensino, como é o caso da Kroton, Anglo e outras.”

A socióloga Edneia Gonçalves, assessora da Ação Educativa, defendeu o rompimento da barreira do silêncio em torno do racismo na escola como ponto de partida para a construção, na prática, da educação prevista na legislação brasileira. “O momento exige o conhecimento dos documentos legais e marcos jurídicos que podem nortear nossa tomada de posição em meio à disputa pela ideia de nação que se quer, num trabalho permanente e coletivo contra o racismo, sexismo, desigualdade de gênero e outras iniquidades. Por isso a escola tem de ter partido (isto é, fazer opção) pelos direitos e pela vida digna para todos”.

Coordenador da unidade de educação de jovens e adultos da Ação Educativa, Roberto Catelli Jr. foi o mediador do debate. Ele destacou que uma das forças da proposta está na ficção em torno do doutrinador de esquerda. “Essa ficção não cola para os doutrinadores de esquerda, e sim para aqueles que não abrem espaço para o debate, o diálogo.”