Repressão

PM usa bomba ‘vencida’ e balas de borracha contra alunos da UFSC

Após ação truculenta da polícia no campus da Universidade Federal de Santa Catarina, estudantes ocuparam reitoria e conseguiram aprovar plano democrático de segurança no campus

Repressão começou na tarde de terça-feira (25), com ação da Polícia Federal para investigar tráfico de drogas <span>(Karem Kilim)</span>'Havia policiais federais sem identificação que não deixavam ninguém sair do bosque', denuncia estudante <span></span>'Antes mesmo de conflitos já estavam presentes um grande efetivo, a tropa de choque, armas de bala de borracha e cachorros', diz reitoria  <span></span>'Nem mesmo na ditadura a polícia entrou no campus', lamenta doutoranda <span></span>O diretor do Centro de Filosofia e Ciências Humanas foi agredido pela polícia e cinco alunos foram presos <span></span>A operação não encontrou ninguém com quantidade de drogas suficiente para ser considerado traficante <span></span>Os estudantes ocuparam a reitoria na própria terça-feira, para reivindicar ações efetivas contra a repressão no campus <span></span>

São Paulo O que seria um dia normal de aulas, rendeu para a estudante de jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Luara Wandelli, de 20 anos, um “título” sem comemoração: ela foi a vítima com ferimentos mais graves da ação truculenta – e ainda pouco explicada – da Polícia Militar, na tarde da última terça-feira (25). A jovem foi atingida nas pernas pelos estilhaços de uma bomba de gás lacrimogêneo com validade vencida, enquanto verificava o que ocorria na movimentação atípica no prédio do Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFH) ao sair da aula. Resultado: quatro pontos em uma coxa, ferimentos na perna e infecções provocadas pela ferrugem do armamento.

Além dela, organizações estudantis contabilizam pelo menos 25 pessoas feridas por balas de borracha durante a ação, grande parte no rosto. Isso contraria a orientação dos fabricantes da munição, que aconselham o uso apenas abaixo da cintura.

A operação truculenta ocorreu próxima a uma escola de educação infantil, onde estudam crianças de zero a 6 anos e começou após agentes da Polícia Federal acionarem a PM. Os policias federais estariam no campus para investigar denúncias de tráfico de drogas e teriam se sentido “acuados” por alunos que protestavam contra a prisão de um estudante que portava dois cigarros de maconha, quantidade que não caracteriza crime de tráfico.

“A ação foi desproporcional e violenta, com uso de força e de policiais à paisana. Foram disparadas muitas balas de borracha, em todas as direções. Pelo menos mais 15 estudantes estavam na delegacia comigo, machucados, fazendo boletim de ocorrência”, diz Luara. “Estava próxima da bomba, fui atingida e machucada, mesmo estando de calças. Se usada dentro da data de validade, a bomba não estilhaça. Ela não pode estilhaçar”, critica a estudante.

Durante os protestos de junho, em São Paulo, RBA denunciou que a Polícia Militar também usou bombas de gás lacrimogênio com validade vencida. O uso indiscriminado de balas de borracha deixou o fotógrafo Sérgio Silva cego de um olho enquanto trabalhava e atingiu dezenas de manifestantes e profissionais da imprensa.

“Eu estava no bosque da universidade e percebemos que alguns estudantes estavam sendo presos. Havia policiais federais sem identificação que não deixavam ninguém sair. Quando as pessoas tentavam sair, eles seguravam e revistavam. Os professores ficaram muito tempo tentando negociar”, conta a aluna de Filosofia, Karem Kilim.

Por conta da repressão, alguns alunos reagiram. “Quando o choque chegou, veio para cima dos estudantes e dos professores. Muitas pessoas foram presas e agredidas. Como reação à violência, os estudantes tombaram um carro da polícia”, explica Karem.

O diretor do Centro de Filosofia e Ciências Humanas, professor Paulo Pinheiro Machado, também foi agredido pela polícia e cinco alunos foram presos e liberados no mesmo dia. A operação não encontrou ninguém com quantidade de drogas suficiente para ser considerado traficante.

Ainda na terça, os universitários ocuparam a reitoria para reivindicar ações efetivas contra a repressão no campus. Após uma rodada de negociações, eles e os dirigentes da UFSC chegaram hoje (28) a acordo que prevê a elaboração, de forma democrática, de um plano de segurança.

Herança da militarização

“Minha filha é uma estudante dedicada, séria e bastante elogiada pelo professores. É uma menina que estuda música, literatura, francês”, lamenta Raquel Wandelli, a mãe da jovem ferida. Ela, que é doutoranda em Literatura na mesma faculdade, completa: “A Polícia Militar não está preparada para lidar com a juventude”.

A UFSC afirma que não foi avisada que a Polícia Federal realizaria uma ação na terça-feira no campus. Segundo a assessoria de imprensa da universidade, membros da reitoria foram convocados pela PF para depor sobre tráfico em agosto de 2013 e, desde então, não foram comunicados sobre operações.

“A comunidade da Universidade Federal de Santa Catarina foi vítima de uma ação violenta e desnecessária, comandada por delegados da Polícia Federal, ferindo profundamente a autonomia universitária e os direitos humanos e qualquer protocolo que regule as relações entre as instituições neste país”, disse a reitoria, em nota emitida na terça-feira. “Segundo relatos que nos foram feitos por telefone, a imagem era de terror. Antes mesmo de quaisquer conflitos existirem, já estavam presentes um grande efetivo, a tropa de choque, armas de bala de borracha e cachorros.”

“Enquanto os relatos chegavam ao Gabinete, estávamos em constante contato com a Secretaria de Relações Institucionais, com o Ministério da Justiça e a Secretaria de Direitos Humanos em Brasília, solicitando uma mediação desses órgãos para que não ocorresse um previsível desfecho violento”, afirmou o texto. “Reafirmamos nosso total repúdio ao lamentável episódio vivido hoje pela Comunidade Universitária. E reiteramos que, em nenhum momento, solicitamos ou fomos previamente informadas dessa ação.”

A Polícia Federal, no entanto, declarou, também em nota, que em 29 de agosto de 2013, membros da reitoria da UFSC procuraram a PF solicitando providências para reprimir o tráfico de drogas no ambiente universitário. Na época, uma solicitação do Ministério Público Federal motivou a instauração do inquérito policial para apurar a situação na universidade.

“É do Centro de Filosofia e Ciências Humanas que saem movimentos de defesa das minorias e das diferenças. É um lugar que incomoda os setores mais repressores. Foi uma ação com intenção política”, critica Raquel, a mãe da jovem ferida. “Os policiais constrangeram e machucaram estudantes que estavam nas aulas e os professores que se colocaram a frente deles para defendê-los. Nem mesmo durante a ditadura, quando eu era graduanda da universidade, a polícia entrou no campus.”

Várias instituições lamentaram, em nota, a ação truculenta da Polícia Militar. “Infelizmente, no episódio em pauta, a edição veiculada em alguns noticiários errou ao mostrar primeiro a reação dos estudantes e depois a ação da polícia, quando o que aconteceu foi o contrário. As imagens deixam claro que a polícia deu início à ação violenta e assumiu os riscos daí decorrentes, desencadeando a reação dos estudantes”, atentou o Sindicato dos Jornalistas de Santa Catarina e a Federação Nacional dos Jornalistas.

“A violência, venha de onde vier, é inaceitável, ainda mais em um espaço público e vocacionado para a educação como o Campus da UFSC”, lamentou a Universidade Estadual de Santa Catarina (Uesc).

“Salta aos olhos a desproporção dos meios utilizados pela ação da Polícia Federal e da Polícia Militar para combater um crime que sequer é penalizado por nosso ordenamento jurídico. A ação se caracterizou pela intransigência e pela violência que, não raro, são a marca das forças policiais em nosso país, o que revela a necessidade urgente de discutir a remodelação dessas instituições, em particular a desmilitarização”, disse o Núcleo Catarinense da Associação Juízes para a Democracia.