Viramorim

Escola pública sem paredes completa dez anos e comemora com virada cultural

Unidade municipal na zona oeste da capital paulista enfrentou resistências, mas chegou a uma década de mudança pedagógica com o propósito original: um lugar em que se pode dialogar e discordar

Ao romper muros físicos e psicológicos, a Amorim Lima sofreu resistências, mas, ao final, o balanço é positivo <span>(Paula Nogueira/RBA)</span>Ana Elisa afirma que, para fazer o projeto avançar, mais que dinheiro, o necessário é coragem <span>(Paula Nogueira/RBA)</span>O grupo de maracatu Bloco de Pedra, que já havia participado de outra festa na escola, foi a grande atração da virada <span>(Paula Nogueira/RBA)</span>Os 'ninjinhas' passaram por uma oficina para que pudessem registrar as imagens da festa <span>(Paula Nogueira/RBA)</span>

São Paulo – A batida forte e contagiante do maracatu corria solto em uma das quadras da Escola Municipal Desembargador Amorim Lima. Em outra, ao lado, o ritmo da toada pernambucana embalava uma partida de futebol que reunia índios, alunos e quem mais chegasse. Tudo junto e misturado. O dia era de festa, mas a diversidade e a inclusão há tempos se tornou uma marca do colégio. Localizada no Butantã, zona oeste de São Paulo, a escola há dez anos decidiu derrubar suas paredes e ousar um jeito diferente de ensinar, mais horizontal e democrático. O projeto acaba de completar dez anos e celebrou com 24 horas de atividades no sábado (9).

A virada cultural da Amorim Lima, que ganhou o nome de Viramorim, teve início por volta das 14h com uma apresentação do coral Ara Hovy, da aldeia guarani Tenondé Porã, de Parelheiros, zona sul de São Paulo. Os índios já são velhos conhecidos do colégio. “É a quarta vez que nos apresentamos aqui na escola”, conta Rogério Tibe, 39, coordenador do coral. Depois da apresentação, os índios montaram uma banca de artesanatos e CDs, ao lado da oca. Sim, a escola tem uma cabana indígena em uma área de jardim, próxima ao pátio, construída há anos pelos guaranis. Por todos os cantos, crianças brincavam com arco e flecha. “Aqui todos nos tratam com carinho”, comenta Tibe.

O guarani ressalta a importância do espaço que a escola tem dado a eles. “A vida na aldeia anda bem complicada”, reclama. Segundo ele, falta trabalho. Caça há tempos não existe. “De vez em quando aparece um tatu”, diz. Dependem apenas do coral e do artesanato. “Gostaria de ter patrocínio, de fazer mais apresentações mais o acesso a alguns lugares é muito burocrático”, lamenta. Problemas à parte, todos pareciam se sentir em casa. “Aqui é legal porque tem árvores”, comentou o jovem indígena Marcos da Silva, 14.

Além de arvores e oca, a escola Amorim Lima se diferencia das demais por seu projeto pedagógico. A maior parte das aulas é dada em um salão compartilhado por alunos de diferentes séries e idades. O espaço, que até o final da década de 1990 ainda tinha salas e paredes, hoje abriga mais de 100 estudantes. No total a escola tem cerca de 700 alunos. Aulas no molde mais tradicional, com uso de lousa, somente de português, matemática e inglês, em outro espaço, com salas menores. “É um jeito diferente de estudar”, destaca a aluna Clara Nana, 12, há dois anos na escola. “Os professores se relacionam com a gente de uma maneira mais amigável”, acrescenta a jovem.

Inspirada na experiência da Escola da Ponte, de Portugal, a escola Amorim Lima desenvolve um projeto de educação democrática, que inclui pais, alunos e comunidade na gestão escolar. A regra é: todos podem e devem participar. Outra característica do método utilizado é a autonomia dada aos estudantes. Cada aluno tem o seu roteiro de pesquisas com os temas a serem estudados durante o período. E o próprio aluno é responsável por administrar seus estudos. “Gosto dessa liberdade”, diz Fernanda Oliveira, 12, há três anos na escola. Mas há quem torça o nariz pra tanta independência. “Gosto do salão, mas acho meio complicado o roteiro”, observa Joana Garcia, 12.

A jornalista Marcia Carini deu uma oficina de mídia para os alunos do Amorim Lima e se apaixonou pela escola. Gostou tanto que levou seu filho para estudar lá. Durante um ano e meio produziu três jornais com um grupo de estudantes com idades entre 10 e 14 anos. “Trabalhamos textos e observação crítica da mídia”, conta. Ela recorda que uma das pautas era entrevistar a mãe. “Surgiram histórias incríveis.” Oficinas culturais com profissionais de diversas áreas são outro diferencial. O filho, Loretto Carini Cesaroti, 7 vestiu a camisa. “Aqui é legal porque a escola é pública e tem jardim”. Disse o garoto, sem largar seu arco e flecha.

‘Ninjinhas’ do Amorim

A programação da virada cultural do Amorim foi intensa e diversa. No pátio da escola, durante a tarde de sábado, um grupo de alunos da escola Liceu de Artes e Ofício, gravou histórias de ex-alunos e pais para a produção de um documentário. O aluno Daniel das Neves, 17, do curso técnico em multimídia, que captava imagens para o filme, estava surpreso. “Nunca vi uma escola com cabana de índio”. Ele também destacou a liberdade que sentiu no lugar. “As crianças ficam à vontade”.

Inspirados no Mídia Ninja, que ficou conhecido pela cobertura em tempo real das recentes manifestações de rua, um grupo de ‘ninjinhas do Amorim’, com tablets à mão, registrou toda a festa. “A proposta foi fazer um registro online, usando redes sociais”, explica a jornalista Vanessa Cabral, orientadora da atividade. Ela fez uma oficina com os estudantes, onde foi discutido usos das redes sociais, além de textos e fotos.

Velha guarda

Uma roda de conversa que reuniu a velha guarda de educadores da escola Amorim Lima avançou noite adentro, com muitos elogios ao projeto. Mas críticas também não faltaram. “Perdemos coisas importantes como as viagens de estudo do meio”, apontou Luiz Braga. “Conversei com alunos que saíram daqui sem sequer conhecer Santos.” Para ele, apesar de avanços, a escola ainda não é modelo. “Temos muitas diferenças internas, tem alunos que saem sabendo bem pouco.”

Para o educador Gilberto Frachetta, o desafio para a próxima década é justamente retomar o projeto pedagógico original. “Obstáculos são vários”, diz. Entre eles, a resistência de professores, pais e alunos em trabalhar com um novo modelo. “No início, a escola Amorim, como outras da rede, tinha problemas e alunos insatisfeitos”, relembra.

“Para fazer a escola avançar, não é necessário somente dinheiro, é preciso coragem”, afirma a diretora Ana Elisa, que há mais de uma década decidiu derrubar as paredes da escola. Ela diz que, ao introduzir a cultura na escola, inseriu toda a comunidade. “Aqui pode discutir, pode não concordar, pode ser diferente”, ressalta. Há 16 anos na instituição, disse que desde o inicio de seu trabalho percebeu na comunidade um potencial diferente. “Encontrei pessoas que se olham no olho e estão dispostas a conversar”.

A festa avançou a madrugada com balada, futebol, ginástica e até campeonato de bate-cards. De manhã um grupo se reuniu para recarregar as energias com uma saudação ao sol. Tão fundamental quanto o providencial café da manhã coletivo, compartilhado por corajosos, animados e alguns sonolentos, professores, pais e alunos. Com bateria recarregada, a comunidade do Amorim se jogou novamente na festa, que encerrou na tarde deste domingo (10). No cardápio de atrações, a escola de samba Dragões da Real, capoeira e a tradicional dança do coco.

Maracatu foi principal atração

Uma das principais atrações da virada cultural da Escola Municipal Desembargador Amorim Lima, foi o grupo de maracatu, Bloco de Pedra. “Já havíamos participado de uma festa aqui, com um cortejo pelas ruas do entorno da escola”, conta Marcio Lozano, coordenador do grupo, que há 13 anos anima as tardes na quadra da Escola Estadual Professor Alves Cruz, no Jardim América, zona oeste de São Paulo.

Foi lá que surgiu o grupo, dentro de uma iniciativa de revitalizar a escola, que enfrentava à época inúmeros problemas, correndo risco de fechamento. “A proposta apareceu dentro de um fórum criado para pensar atividades de um projeto de educação integral, que ocupasse os espaços ociosos”, conta.
As toadas, como são chamadas as músicas, fez chacoalhar o público na festa da escola Amorim. “É uma brincadeira muito gostosa, de matriz africana, mas bem brasileira, nasceu em Pernambuco”, explica o coordenador do bloco. “Quem quiser entrar na dança só aparecer no Alves”, convida Lozano. E o melhor: é de graça.

Os encontros são realizados aos sábados das 10h às 17h na quadra da escola. Atividades incluem construção de instrumentos e curso de maracatu com duração de dois meses. “Quem fizer até o fim, pode entrar para o bloco”, avisa. “Em dias de sol, aparecem cerca de 800 pessoas”, arremata Lozano.
As 10 melhores coisas do Amorim

Salta aos olhos de quem entra na escola Amorim Lima a quantidade e a variedade de espaços, e o cuidado com essas áreas, tanto por parte dos funcionários como de alunos. Esses espaços foram destaque em fanzines feito por alunos, especialmente para a festa – os pequenos jornais elencam as 10 melhores coisas da escola, no olhar dos estudantes.

Assinado por duas alunas, Yasmim e Maria, um dos fanzines elogia o ateliê onde acontecem as aulas de arte; a tenda, de aulas de cultura corporal e a oca, que também é chamada de opi.  Balança, rampa de skate, quadras, hortas, laboratório e biblioteca também foram lembrados em prosa e verso pelas meninas.