Consumo

Venda de motos cresce, enquanto cai a de carros, num Brasil mais pobre e informal

Brasileiro tem trocado as quatro pelas duas rodas em função da redução da renda, do aumento do trabalho informal e da explosão de preços dos combustíveis

Gabriel Jabur/ Agência Brasília
Gabriel Jabur/ Agência Brasília
Brasileiros apostam nas motos para economizar na gasolina e fazer "bicos"

São Paulo – A venda de carros no Brasil caiu 23,2% entre janeiro e março deste ano. Foram 146,8 mil veículos licenciados, de acordo com a Associação Nacional das Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea). Nesse período, a produção também caiu 17% na comparação com o ano anterior. Por outro lado, os brasileiros compraram 275 mil novas motos no primeiro trimestre de 2022. As vendas, que cresceram 34%, já superam o período pré-pandemia. A produção dos veículos de duas rodas também subiu 37,8%, segundo a Associação Brasileira dos Fabricantes de Motocicletas, Ciclomotores, Motonetas, Bicicletas e Similares (Abraciclo).

Diversos fatores explicam os motivos que levam os brasileiros a trocar as quatro rodas dos automóveis pelas duas das motocicletas. Além de ser um produto mais acessível – R$ 17 mil em média –, as motos consomem menos combustível. Nos últimos dois anos, a gasolina acumula alta de 58,5%, como resultado da atual política de preços da Petrobras.

O aumento na produção e venda de motocicletas também está relacionado com o avanço do trabalho informal no Brasil. Entre 2016 e 2021, o número de brasileiros que trabalham para aplicativos de entrega de mercadorias cresceu 979,8%, conforme levantamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

Nesse sentido, para oferecer um serviço com custo menor, a Uber começou a operar o transporte de passageiros com “motociclistas parceiros”. O serviço já está disponível, desde o último mês, em 11 cidades brasileiras.

Artigo de luxo

Por outro lado, cinco dos dez carros mais vendidos do Brasil atualmente têm preços a partir de R$ 100 mil. “A gente hoje quase não tem mais um veículo de entrada, um carro ‘tipo popular'”, destaca o diretor de políticas industriais do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC”, Wellington Damasceno. Com a perda de renda da população brasileira nos últimos anos, as montadoras decidiram se concentrar em veículos de “alto padrão”, segundo ele.

Assim, a produção anual de veículos vem caindo abruptamente. Em 2013, o Brasil atingiu o seu recorde, com 3,74 milhões de veículos produzidos. No ano passado, foram fabricadas 2,24 milhões de unidades. A indústria automobilística também vem sofrendo com a falta de componentes eletrônicos, os chamados semicondutores. O componente começou a faltar em 2020, em meio à quebra das cadeias produtivas que ocorreu em função da pandemia. Esse cenário se agravou com a guerra na Ucrânia.

Ainda assim, Damasceno destaca a retração do mercado consumidor e a falta política industrial para o setor como os principais responsáveis. “Éramos o sétimo produtor mundial de veículos, caímos para nono. Então o governo deveria fazer uma política industrial que levasse em consideração as nossas capacidades”.

Impactos na indústria

Na opinião dele, a alta na venda de motos está ligada com o aumento do desemprego. “É o caso do trabalhador que foi mandado embora, pegou a rescisão e comprou uma moto para tentar fazer um bico”. Por outro lado, ele afirmou que as classes mais pobres, e até mesmo a classe média, enfrentam “dificuldades enormes” para adquirir um automóvel.

“A gente tem duas pontas de consumo. E o miolo, que poderia ter um grande potencial, não tem nem oferta de veículos. O grau de empobrecimento das famílias brasileiras está completamente ligado a isso”. Em um ano, o rendimento médio do trabalhador caiu 8,7%, de acordo com o IBGE.

Em busca de mercados mais promissores, a Ford encerrou a produção de automóveis no Brasil em 2020. Na sequência, a Mercedes-Benz também fechou a sua única fábrica de veículos no Brasil, em Iracemápolis (SP). Mas recentemente foi a vez da Toyota encerrar a produção de autopeças em São Bernardo, no ABC Paulista.

“É um fenômeno muito ligado ao momento político em que nós vivemos. Se não fizermos uma política diferente dessa que temos hoje, com outro olhar para o desenvolvimento econômico e social do país, vamos amargar esse cenário por muito tempo. Não é uma coisa do mercado, simplesmente”, criticou Damasceno.

Ele destacou que a produção de automóveis envolve uma cadeia muito mais ampla de fornecedores, na comparação com a produção de motocicletas. As montadoras têm fôlego financeiro e outros mecanismos – como férias coletivas e lay-off”, para reduzir a produção sem apelar para a demissão, num primeiro momento.

Mas não é o caso das pequenas e médias indústrias que fazem parte da cadeia. “Para essas empresas, a primeira medida é fazer a demissão. Então você aumenta a quantidade de desempregados e joga mais trabalhadores para a informalidade”.

Contrapartidas

Nesse sentido, o diretor de políticas industriais dos metalúrgicos cobra uma política industrial com metas de investimento para o setor. Segundo ele, as montadoras devem apresentar “contrapartidas”, como a ampliação do índice de nacionalização dos veículos, e também garantindo os empregos.

“Recentemente o governo federal anunciou a redução do IPI para as montadoras. Agora, qual foi a contrapartida? Teve como contrapartida que não poderia haver demissão, que teria que ter investimento? Ou alguma outra forma de garantir que esses recursos que a sociedade acaba abrindo mão traria algum tipo de de desenvolvimento ao país?. Não teve. Simplesmente desoneraram, sem uma contrapartida”.

Por fim, Damasceno também citou que faltam políticas de crédito para estimular a comercialização de veículos. Em pouco mais de um ano, o Banco Central (BC) promoveu uma elevação brutal na taxa básica de juros. A Selic saiu de 2% ao ano, em fevereiro de 2021, para os atuais 11,75%, uma sucessão de nove altas seguidas. Da mesma maneira, também aumentou o custo do financiamento dos veículos, o que agrava ainda mais a crise no setor.