século 21

Guerra na Ucrânia e sanções à Rússia têm efeitos perversos, e podem desencadear nova ordem mundial

No Brasil, investidores tendem a ganhar no curto prazo em consequência do conflito, mas inflação e juros devem subir ainda mais: para população ‘é um desastre’

Reprodução/Youtube/Sputnik
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Tropas russas avançam na região de Kiev: conflito pode se prolongar por mais tempo do que se esperava

São Paulo – Nas 24 horas posteriores ao reconhecimento, pela Rússia, dos territórios de Donetsk e Luhansk como “repúblicas populares” independentes, a União Europeia, os Estados Unidos e a Grã-Bretanha compraram da Rússia 3,5 milhões de barris de petróleo e produtos refinados no valor de US$ 350 milhões. Além disso, o Ocidente adquiriu também – apenas nessas 24 horas – US$ 250 milhões em gás natural, e ainda alumínio, carvão, níquel, titânio, ouro e outras commodities.

Segundo a Bloomberg, o total dessas compras  chega a US$ 700 milhões num só dia. As informações foram passadas à RBA pelo economista e professor da Unicamp Márcio Pochmann. “O fato de eles terem comprado (petróleo) apenas indica que sabiam das possíveis sanções, e tomaram medidas de antecipar a aquisição, o que pode inclusive indicar que o conflito pode durar mais tempo do que se imagina”, diz.

Quanto mais prolongado for o conflito, maior será o impacto sobre a população, sobretudo a parcela mais vulnerável. De imediato, os movimentos econômicos decorrentes da guerra e das sanções impostas pelos EUA à Rússia se traduzem em inflação. O petróleo, por exemplo, cotado a US$ 96,84 em 23 de fevereiro (um dia antes da invasão à Ucrânia) chegou a US$ 118 na sexta-feira (4).

Com a guerra, os preços do trigo no mercado internacional subiram 30%. Os dois exemplos mostram que produtos básicos para a vida da população, como a gasolina e o pãozinho da padaria, ficarão mais caros. Já há quem preveja uma explosão do preço do petróleo até US$ 150 o barril.

No caso do Brasil – explica o economista Guilherme Mello, também da Unicamp –, alguns podem se beneficiar, como investidores, em particular estrangeiros, e considerando que o Brasil é produtor e exportador de um conjunto de commodities. “O cenário tende a levar a uma valorização de ativos de empresas do setor de commodities, e até valorização cambial”, diz. O analista pondera que, diante da instabilidade, é difícil prever se haverá mesmo uma valorização da taxa de câmbio, mas se houver pode render ganhos a esses investidores.

Inflação e juros

Mas, se para alguns investidores, em particular estrangeiros, os efeitos econômicos da guerra na Europa podem até ser positivos no curto prazo, “para o povo é um desastre”, avalia Mello. “Em particular devido ao aumento das commodities energéticas (combustível, gás), mas também o quadro vai afetar as alimentícias e fertilizantes, e portanto o custo da produção de alimentos. Tudo isso em algum momento vai chegar para o consumidor.”

E então a inflação, cuja previsão já está acima do teto da meta (que era de 5%), vai subir. A última previsão do mercado, esta semana, estava em 5,6%. “Mas já tem gente falando em mais de 6%. E aí vai ter pressão sobre preços e também sobre juros. Já se fala que o Banco Central não vai parar em 12%, e alguns preveem até mais de 12,5%.”

Mello ressalva que, por ser ano de eleição, o governo de Jair Bolsonaro “está jogando o que tem e o que não tem na economia”. A partir da semana que vem, o Planalto começará a anunciar uma injeção de cerca de R$ 150 bilhões na economia. As  medidas envolvem incentivo ao consumo e redução de impostos.

Nova ordem mundial?

Para Pochmann, o conflito entre Rússia e Ucrânia não só não é localizado como aparentemente pode se prolongar. Se isso acontecer, mantido o atual quadro, possivelmente a economia mundial vai entrar em recessão. “Com isso, me parece que está ficando cada vez mais claro que a ordem mundial que se estabeleceu em 1991, com o desmembramento da União Soviética e o fim da Guerra Fria, isso cai por terra”, acredita o economista.

As sanções podem começar a incentivar um outro sistema monetário. Pochmann lembra que já há experimentações nesse sentido na China, e mesmo na própria Rússia. São sistemas ainda pequenos, e a predominância do dólar continua inquestionável, mas o embrião de uma nova ordem começa a se colocar no mundo.

“Desde 2015 a China criou um sistema de pagamentos que sustenta a estrutura dos países conectados na chamada ‘nova rota da seda’”.  Mudar as reservas em dólar para ouro, criptomoedas como bitcoin, são alternativas. Pochmann destaca que, apesar de sanções econômicas, Cuba, Venezuela, Irã e Síria não sucumbiram.

Guerra de versões

A guerra é também uma disputa de comunicação. Se a Otan não está operando por meio de ações militares diretas, sua atuação se dá concretamente nos meios de comunicação, que lhe dão cobertura. “Os meios de comunicação ocidentais se unificaram, de certa maneira em uma espécie de assessoria do Departamento de Estado dos EUA”, acrescenta Pochmann.

Ao mesmo tempo, essa mídia elevou o presidente ucraniano Volodymyr Zelenski ao status de herói, seus analistas afirmam que a Rússia está economicamente destruída e Putin, liquidado.

Já o presidente russo diz o contrário, embora não negue as dificuldades. Afirmou esta semana que tudo transcorre como planejado. Mais do que isso, indicou na quinta-feira que seus planos pressupõem a rendição total ou a derrota militar da Ucrânia: “Russos e ucranianos são uma nação. Eu nunca vou desistir disso”, disse Putin.

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