Parceiros no caos

Na saúde e na economia, Bolsonaro e Paulo Guedes são faces da mesma tragédia

Negacionismo do presidente e seu ministro da Economia levou país à catástrofe e triplicou número de pobres. E, no Dia Mundial da Saúde, fez do Brasil uma ameaça ao mundo

Marcos Corrês/PR
Marcos Corrês/PR
"Um dos líderes do negacionismo desde o início foi o próprio Paulo Guedes", diz Guilherme Mello, da Unicamp

São Paulo – No atual cenário brasileiro, com as terríveis crises econômica e sanitária se alimentando mutuamente, como sustentar algum otimismo? “Otimismo é achar que as pessoas no país vão perceber a catástrofe e enfim mudar de conduta em 2022. Quanto a isso ainda guardo um pouco de otimismo”, diz o economista Guilherme Mello, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Nesse quadro sombrio, setores da mídia, do mercado e do Congresso Nacional continuam a defender a agenda econômica de Paulo Guedes e a necessidade das “reformas” como se o ministro da Economia falasse por um governo e seu chefe, Jair Bolsonaro e seu o discurso negacionista, por outro. E assim o país chega ao segundo Dia Mundial da Saúde, neste 7 de abril, sufocado por uma pandemia.

“Não é ficando em casa que vamos solucionar o problema”, disse Bolsonaro na semana passada, contrariando fala de minutos antes dos presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), ambos ao lado do ministro da Saúde, Marcelo Queiroga. Todos os três defendiam os protocolos científicos contra a Covid-19.

Diante da abordagem midiática que parece perdoar o ministro, um cidadão desavisado é levado a acreditar que a tragédia sanitária no Brasil é responsabilidade exclusiva de Bolsonaro, enquanto Guedes faz o necessário para salvar as contas públicas e a economia do país. O próprio ministro passou a defender a vacinação em massa. Mas isso porque esta passou a ser também uma exigência do “mercado”, que não quer ver o governo aumentando gastos para combater a covid-19. Chamou a imprensa para ser filmado no momento em que recebia a sua dose. A narrativa tenta passar a falsa ideia de que a política econômica do governo não tem nenhuma relação com a catástrofe sanitária no país e com o colapso do sistema de saúde.


Leia também sobre o Dia Mundial da Saúde


Duas faces da moeda

Mas o presidente e seu ministro são “duas faces da mesma moeda”. Em função da pandemia associada à política econômica, o número de pobres no Brasil triplicou em seis meses: foi de 9,5 milhões em agosto de 2020 para mais de 27 milhões em fevereiro de 2021, segundo dados da Fundação Getulio Vargas. A mesma instituição aponta alta no IGP-M de 31,10% em 12 meses, o que representa cinco vezes mais que em março de 2020 (6,81%).

“Não podemos esquecer que um dos líderes do negacionismo desde o início foi o próprio Paulo Guedes. Foi um dos primeiros a falar absurdos sobre a pandemia, assim como seus asseclas e súditos na equipe econômica”, destaca Mello. Entre os absurdos, Guedes afirmou em 13 de março de 2020: “Com 3 bilhões, 4 bilhões ou 5 bilhões de reais a gente aniquila o coronavírus”.  Um ano depois, o Brasil se aproxima de 340 mil mortos pela pandemia, mais de 4 mil por dia, e o país é uma ameaça global.

No final do ano passado, Guedes e a Secretaria de Política Econômica diziam que a pandemia estava acabando e a economia começava uma “recuperação em V”. Em 16 de dezembro, o ministro disse, em inglês, no Forum of the Americas, que “até o final do ano” o país voltaria “à situação ordinária”, encerrando os programas “para preservar empregos, vidas e a economia”. “As pessoas estão voltando ao trabalho, a doença fez um retorno, mas não podemos falar em segunda onda”, afirmou. “Vamos acelerar as privatizações”, prometeu aos investidores.


Esse governo é uma mistura entre o neoliberalismo arcaico da área econômica e o patrimonialismo corporativista de Bolsonaro. O acordo em torno da destruição do Estado reside na convivência desses valores


O governo decretou, portanto, que em 31 de dezembro a pandemia tinha acabado e não haveria prorrogação do “estado de calamidade”, Orçamento de Guerra (que permitia driblar o teto de gastos) e auxílio emergencial. Com a pobreza e a fome crescendo, o governo demorou quase quatro meses para liberar novo auxílio emergencial, de irrisórios R$ 250 em média.

Em plena tragédia social, até esta quarta-feira (7), o orçamento de 2021 sequer está em vigor, devido a impasse entre a área econômica do governo e deputados sobre verbas a ser destinadas a emendas parlamentares. A área da saúde, pelo texto aprovado no Congresso, prevê R$ 125 bilhões, valor superior aos R$ 121 bilhões do ano passado. Mas inferior aos valores de fato aplicados no período anterior, R$ 161 bilhões, incluindo o que foi liberado extraordinariamente para o combate à pandemia. Segundo levantamento do G1, na prática, o valor aprovado para 2021 “retorna ao patamar pré-pandemia”.

Bolsonaro, Paulo Guedes e o fim do Estado

O Orçamento “é uma peça fictícia”, diz Guilherme Mello, devido à disputa dentro do governo entre quem quer garantir recursos ao Centrão, por emendas, conforme acordos de Bolsonaro, e a equipe de Paulo Guedes, para cumprir regras fiscais ultraliberais inexequíveis. “Esse governo é uma mistura entre neoliberalismo arcaico (representado pela área econômica) e patrimonialismo corporativista (por Bolsonaro)”, afirma. A convivência entre esses dois polos gera atritos, mas na verdade é um acordo pelo qual passa a destruição do Estado (via privatização) e de seus mecanismos de intervenção em desenvolvimento, área social e investimento público.

A reconstrução depois da pandemia seria no sentido de reverter o quadro em que as famílias perderam renda, emprego e horizontes. “Mas, mais do que isso, as famílias perderam pessoas, que morreram, que sustentavam as famílias, que estarão desmontadas, assim como as empresas estão quebradas. Nesse cenário, a situação desesperadora poderia ser compensada com medidas de suporte. Mas o governo continua negando a gravidade da pandemia e a política é destruir os instrumentos públicos de atuação no cenário de recuperação econômica”, diz o professor.

Com base em dados divulgados nesta terça-feira (6), o Fundo Monetário Internacional melhorou as perspectivas para a economia brasileira em 2021, prevendo crescimento de 3,7%. Mas eventual crescimento no ano-calendário 2021 sobre 2020 é ilusório. “O dado interanual tem carregamento estatístico expressivo (carry over, herança estatística)”, explica o economista Paulo Nogueira Batista Júnior, no programa Soberania e Debate, da TVT (assista aqui). Nogueira Batista foi diretor do FMI indicado pelo governo Lula e participou da primeira diretoria executiva do Novo Banco de Desenvolvimento, o Banco dos Brics.

Números x pessoas

“Nos dados do crescimento, vão aparecer esses 3,5%. E o que isso vai significar para o trabalhador? Nada. É carregamento estatístico do ano anterior. Vai ser só um número. Isso porque a renda terá diminuído brutalmente, o emprego desaparecido, as perspectivas do trabalhador e da família anuladas. Além disso, o filho que ficou sem aula por dois anos vai estar no limbo. E eles vão dizer que o país cresceu. Mas e as pessoas, e as empresas?”, questiona Guilherme Mello.

Em um cenário posterior, provavelmente haverá recuperação internacional dos Estados Unidos, China e até Europa, prevê o professor. Os Estados Unidos de Joe Biden acaba de lançar um pacote trilionário de incentivo para tirar o país da crise da pandemia. O esforço é comparado até mesmo com o New Deal dos anos 1930, do presidente Franklin Delano Roosevelt, para tirar a economia norte-americana da “Grande Depressão”.

Mas, no Brasil, distribuição de renda e riqueza, sistema tributário progressivo (quem tem mais, paga mais) e crescimento voltado ao meio ambiente, entre outros princípios, são pecados contra a sagrada agenda fiscal e política de Paulo Guedes e Bolsonaro. “O governo não só não oferece saída, como compromete a soberania gravemente”, afirmou Nogueira Batista na TVT. “Não vejo como o Brasil pode encontrar uma saída com um governo com essa agenda regressiva, extremista de direita e fundamentalismo de mercado. Ou seja, uma agenda ultraliberal ultrapassada que não é seguida em parte alguma do mundo”, destacou Nogueira Batista, que foi também secretário-especial de Assuntos Econômicos do Ministério do Planejamento em 1985, na gestão de João Sayad.