Colapso à vista

Bolsonaro veta projeto que pretendia reduzir lotação dos ônibus na pandemia

PL previa o repasse de R$ 4 bilhões a estados e municípios com mais de 200 mil habitantes, para garantir a prestação dos serviços durante o estado de calamidade. Situação do setor é grave nas cidades, alerta o Idec, e passageiros já são prejudicados no deslocamento

TV Brasil/Reprodução
TV Brasil/Reprodução
Em nota, Idec afirma que o "governo joga fora a oportunidade de melhorar a mobilidade e a qualidade de vida nas cidades durante e após a pandemia"

São Paulo – O presidente Jair Bolsonaro vetou integralmente um projeto de lei que destinava R$ 4 bilhões ao setor de transporte coletivo de municípios com mais de 200 mil habitantes, incluindo também estados e o Distrito Federal. Segundo o governo, o PL 3.364/2020 seria “inconstitucional” e “contraria o interesse público”. O veto foi publicado no Diário Oficial da União (DOU) desta quinta-feira (10) com argumentos técnicos do Ministério da Economia. 

A pasta justificou que a medida “fixa um teto para a realização de despesa, sem apresentar a estimativa do respectivo impacto orçamentário e financeiro”. E contestou que a aplicação do auxílio emergencial ao setor poderia ultrapassar o período de calamidade pública, que vai até 31 de dezembro deste ano. O governo alega que a proposta pode acarretar redução de receita após 2020. 

Aprovado em agosto pela Câmara dos Deputados e em novembro pelo Senado, o PL tinha como objetivo garantir a prestação do serviço de transporte público coletivo de passageiros, além de reequilibrar os contratos impactados pelos efeitos da pandemia do novo coronavírus. O texto também contava com o apoio da Associação Nacional dos Transportes de Passageiros sobre Trilhos (ANPTrilhos) e o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec).

Projeto previa contrapartidas

De acordo com Idec, desde agosto, quando a entidade passou a incidir sobre a tramitação da medida, foram feitas melhorias no PL do deputado Fabio Schiochet (PSL-SC). O projeto foi aprovado no mesmo mês, mas com substitutivo apresentado pelo relator, o deputado Hildo Rocha (MDB-MA). O novo texto garantiu contrapartidas para que os interessados em aderir à proposta seguissem também algumas regras para receber o dinheiro público. 

Entre os requisitos, as empresas deveriam, por exemplo, rever os contratos de transporte até 31 de dezembro de 2021 e estabelecer diretrizes para a redução gradual de emissões de poluentes tóxicos. O setor também ficaria proibido de conceder novas gratuidades nas tarifas que pudessem onerar os usuários pagantes. E os estados e municípios beneficiados deveriam adotar instrumentos para priorizar o transporte coletivo, como faixas de pedestres, ciclovias e sinalização. 

O PL também garantiu maior transparência aos dados do transporte coletivo operado pelas empresas. O projeto assegurava que a liberação dos recursos às empresas seria feita por etapas pelos estados e o DF. Os entes federados receberiam 30% do valor, equivalente a R$ 1,2 bilhão, e os municípios ficariam com o restante de 70%, ou R$ 2,8 bilhões.

Críticas ao veto

De acordo com o coordenador do programa de Mobilidade Urbana do Idec, Rafael Calabria, o projeto se tornou necessário também para ajudar a reduzir as lotações nos trens, metrôs e, principalmente, nos ônibus em meio a pandemia. Em carta enviada aos ministérios da Economia e do Desenvolvimento Regional, às vésperas do prazo final para sancionar o PL, o instituto alertou que a situação do setor de transportes “é grave nas cidades brasileiras e novas ondas da pandemia já estão ocorrendo”. “É preciso garantir o quanto antes a oferta de transporte público para a população, inclusive às pessoas que trabalham em serviços essenciais”, explicou Calabria no documento. 

Em nota nesta quinta, o Idec lamentou o veto do presidente. O Instituto lembra que os “problemas graves” são anteriores à pandemia, e adverte que a decisão “é prejudicial ao direito dos usuários de transportes”. “O governo joga fora a oportunidade de melhorar a mobilidade e a qualidade de vida nas cidades durante e após a pandemia”, contestou.

As companhias que hoje operam os serviços de transporte adotam um modelo de remuneração baseado no pagamento de tarifa pelos passageiros. Esse modelo, como explica o Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade (LabCidade), vinculado à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), já era responsável por problemas sérios, como a exclusão de acesso à parcela da população e a lotação dos veículos, já que o lucro das empresas está ancorado à quantidade de passageiros por viagens. 

A maior crise do setor

Contudo, na pandemia, esses problemas só se agravaram. As empresas perderam passageiros e receitas. Em contraponto, milhares de linhas deixaram de operar. O anuário da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU), divulgado em outubro, mostrou que o setor deixou de realizar 32 milhões de viagens por dia no auge da pandemia. E os passageiros que não puderam permanecer em home office passaram a circular em ônibus cada vez mais lotados em várias capitais do Brasil. 

De acordo o LabCidade, o correto seria que as empresas prestadoras fossem remuneradas pelo custo da viagem, o que também exigiria mais subsídio público. “Nenhum sistema de transporte coletivo no mundo opera sem subsídios”, destacaram as professoras da FAU-USP Paula Santora e Raquel Rolnik. 

Ao jornal l O Estado de S. Paulo, a ANPTrilhos declarou estar “indignada” com o veto. O presidente da entidade, Joubert Flores, disse que o setor é “relegado pelas autoridades” na “sua pior crise”. De acordo com a ANPTrilhos, o transporte coletivo não está sendo capaz de “suportar os graves impactos” causados pelos efeitos da pandemia. A decisão passa agora o cargo dos deputados e senadores. O Congresso ainda pode derrubar o veto do presidente e garantir o auxílio financeiros às empresas prestadoras.