Novo paradigma

Economistas veem longo caminho de recuperação e defendem políticas anti-Guedes

Eles afirmam que o Estado precisa se fortalecer e aumentar o investimento público para que o país comece a reagir

Reprodução/Montagem RBA
Reprodução/Montagem RBA
Esther e Oreiro defendem mais gasto público e políticas sociais, enquanto ministro de Bolsonaro quer 'destruição do Estado'

São Paulo – Expansão do investimento público, maior papel do Estado, reforma tributária progressiva, revogação da Emenda Constitucional 95 (“teto” de gastos) são algumas das medidas recomendadas por economistas ao ministro Paulo Guedes para que o Brasil inicie um caminho de recuperação. O diagnóstico vai no sentido oposto ao indicado pela equipe econômica (ainda) comandada pelo ministro.

As alternativas para cenário pós-pandemia, principalmente do ponto de vista fiscal, foram discutidas durante debate promovido pelo Conselho Federal de Economia (Cofecon). “A pretensa austeridade, entre aspas, adotada desde 2016 limitou significativamente a capacidade de reação da economia”, observa o presidente da entidade, o professor Antonio Corrêa de Lacerda. “E limitará ainda mais frente a crise do coronavírus”, acrescenta.

Escravos da recessão

É preciso que haja “novos paradigmas” econômicos, defende Lacerda. “Se não houver uma solução, vamos ficar escravos da recessão e da estagnação”, alerta. Com crescimento meramente residual, o país não saiu da crise de 2015-16, com o PIB per capita pouco acima de zero. “Com esse tombo de 2020, o quadro se agravará. E a propalada retomada, a partir dos parâmetros atuais, dificilmente se realizará”, diz o professor.

A saída, neste momento, passa por maior gasto público, caminho adotado pelos países tanto do G20 como da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). “Todos têm ampliado seu déficit e a sua dívida. Não é porque eles querem, é uma contingência do momento”, lembra Lacerda.

Décadas de estagnação

“Não pode crescer pra sempre (a dívida). Mas o Brasil precisa retomar o crescimento, afirma José Luís Oreiro, professor associado da Universidade de Brasília. “Se a política econômica não for mudada, nós podemos passar duas décadas estagnados.” Suas projeções apontam voltar ao PIB de 2014 apenas em 2033, caso o crescimento anual fique em 1%. Em hipótese mais otimista, de 3%, em 2024 – nesse caso, estagnação de “apenas” 10 anos. “Se for PIB per capita, é pior ainda”, diz Oreiro.

Para este ano, ele acredita que a queda não será tão grande como se previa, mas mesmo assim será significativa, entre 5% e 6%. “A renda emergencial conseguiu amortecer de forma bastante significativa”, afirma o professor. Ele observa que o presidente era contra ao auxílio e Guedes queria pagar só R$ 200, em vez dos R$ 600 aprovados pelo parlamento.

O economista também aponta a necessidade de investimento público. “Existe uma enorme capacidade ociosa na economia brasileira”, lembra. “É muito pouco provável, para não dizer impossível, que a recuperação cíclica se dê por conta do investimento privado. Empresários investem para ajustar o tamanho da sua capacidade produtiva ao crescimento esperado das vendas. Com o coronavírus, a coisa ficou muito pior.”

Sem justificativa para o “teto”

A ociosidade será uma herança para 2021. Enquanto isso, a equipe econômica insiste em defender um modelo em que o gasto privado viria depois da redução do Estado. “Isso é de um terraplanismo inacreditável”, define o economista. O cenário se completa com redução significativa da força de trabalho. “Seja por conta da pandemia, seja porque (as pessoas) estão desalentadas.” Máquinas e trabalhadores ociosos: “sintoma evidente” de falta de demanda. 

Ele também contesta a argumentação usada como justificativa para a emenda do “teto” de gastos. “Aquela ideia que acabou baseando a narrativa que levou à aprovação da emenda constitucional, que havia um desequilíbrio fiscal estrutural, isso simplesmente não era verdade”, afirma Oreiro. Segundo ele, a dívida bruta se encontrava em nível elevado, porém estável, enquanto a dívida líquida estava caindo. 

“O Brasil não tinha problema fiscal antes da crise. A dívida aumenta com a crise, não foi resultado da gastança.” Ele comenta que não teria feito as desonerações implementadas pelo governo Dilma em seu primeiro mandato, “mas certamente o aumento da dívida não se deu” por causa dessas medidas. O país teve queda do nível de atividade e de arrecadação de impostos. O professor inclui um terceiro elemento, a política monetária. Sua crítica se concentra em 2015: “Foi o ano em que o Brasil fez tudo que não deve ser feito no momento de uma recessão”. Cita fatores como corte de investimentos, aumento de juros e “tarifaço”.

Mais investimento público

A dívida pública não é entrave agora, conclui o economista. Vários países estão fazendo políticas expansionistas. E os dados não respaldam um anunciado “colapso”. “A recuperação da atividade pós pandemia exige aumento do investimento público. Só que a demanda privada continuará deprimida.” Para ele, expansão fiscal com foco em infraestrutura, por exemplo, “pode ser autofinanciável”.

A professora Esther Dweck, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), também usa o termo “terraplanismo econômico”. E concorda que há certo “terrorismo, uma tentativa de impor determinada leitura que é muito enviesada”. Ela se alinha à projeção de queda de 6% no PIB deste ano.

Desigualdade cresce

“A gente já vinha de uma economia bastante estagnada. E o que é pior, com aumento da desigualdade”, lembra, apontando também a importância do auxílio emergencial para conter a retração e até melhorar um pouco a situação social. Mas, como outros economistas críticos à atuação de Guedes, observa que, além do “teto” de gastos, que já era um “cavalo de Troia”, o ministro propôs ações que visavam a “destruição completa do Estado brasileiro”.

Isso em um momento em que o Brasil deveria discutir exatamente o contrário. “Ficou nítida a importância do SUS, do sistema de educação, do sistema de transferências”, comenta Esther, citando ainda um editorial do Financial Times: o vírus expôs a fragilidade do contrato social mundial, segundo o jornal britânico. “No Brasil, isso foi muito mais nítido”, acrescenta, ao lembrar que o vírus foi ainda mais letal em áreas periféricas.

Estado de bem-estar

Em escala global, o próprio Estado do bem-estar social surgiu como alternativa a um “capitalismo desenfreado”, diz a economista. “No Brasil, a  gente deveria estar discutindo isso. A Constituição já traz as bases do Estado de bem-estar. Impostos deveriam ser cobrados conforme capacidade contributiva, algo que a gente nunca a conseguiu fazer.”

A melhoria em período recente, lembra, passou pela ampliação do mercado de trabalho, pela Previdência, Bolsa Família, Benefícios de Prestação Continuada e outras rendas. “Tudo isso é redução da desigualdade, tudo isso é política fiscal. Passa pela capacidade do Estado de atuar.” O retorno muito rápido da austeridade em alguns países, como os Estados Unidos, após a crise de 2008, dificultou a recuperação. “Esse erro a gente não pode repetir”, diz.

A economista defende imposto sobre lucros/dividendos e rendas mais altas, “aquele 0,3% que tem uma alíquota efetiva extremamente baixa”. Além disso, é preciso revogar a EC 95, “não tem paralelo em nenhum país”. E um novo pacto federativo, com mais solidariedade para reduzir desigualdades regionais.