Desenvolvimento em foco

A covid-19 pode ‘salvar’ a Embraer?

Retomar a política industrial no setor aeronáutico brasileiro seria muito importante para uma economia que quer mais do que ser exportadora de produtos primários

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Embraer é a terceira maior fabricante de aviões do mundo

Os dados do PIB pelo IBGE para o primeiro trimestre de 2020 mostram recuo de -0,3%, comparada ao mesmo trimestre do ano anterior. Já na Pesquisa Industrial Mensal (PIM) de Maio de 2020, também do IBGE, para trabalhar com números mais recentes (mas só para a indústria), observamos novamente a profundidade da crise, apesar da tentativa de divulgação dos números com algum otimismo, enfatizando a recuperação mensal frente a abril (mês em que a marcha à ré foi expressiva).

De acordo com a PIM, em maio a produção industrial frente ao mês anterior avançou 7%, depois dos recuos de -18,8% em abril e -9,2% em março. Entretanto, os 7% de recuperação apenas parcial se dão frente a números muito negativos. Se compararmos, entretanto, com maio do ano anterior, temos um recuo de -21,9%, e isso puxado por um recuo nos bens de consumo duráveis de quase 70% (incríveis -86,0% na produção de automóveis). O acumulado em 12 meses na indústria, -5,4%, mostra que os demais meses ficaram longe de compensar menos de três meses (maio, abril e parte de março) de isolamento social pela pandemia da covid-19 e a extensa paralisação de setores da indústria no mês de abril.

Assim, as enormes incertezas resultantes da pandemia devem seguir impactando uma economia fragilizada nos últimos cinco anos, especialmente pela condução da política macroeconômica. Nessa área, segue a monotonia da composição entre a lógica fiscalista e o poder das finanças.

Considerando o tamanho da crise, seus impactos na economia nacional e as consequências sociais e políticas da evolução da crise, é que se podem pensar possibilidades de desdobramentos surpreendentes da crise econômica, embora não haja como medir probabilidades da ocorrência. Essas possibilidades afloram algumas vezes na discussão, mas é preciso entender um pouco do que se está falando.

Teto de gastos

Existem ao menos dois pilares que estruturaram desde o início a política macroeconômica desse governo (assim como do governo anterior). A primeira é a lógica do ajuste fiscal, baseada no último período na Lei de Teto de Gastos. Independente de seus detalhes, a lógica desse tipo de política é que a redução do gasto público libera espaço para a ampliação do gasto privado, aí incluído o investimento.

Por outro lado, a redução da participação do Estado e do custo fiscal de operação do país funcionaria, junto com uma abertura ainda maior para a movimentação de capitais financeiros e outras garantias dadas aos investidores privados e o aprofundamento dos processos de concessões, privatizações e parcerias público-privadas, como um elemento de atração dos capitais externos.

Mas o que se viu foi que, no mesmo período em que foi adotada essa política, houve a redução dos investimentos no país, nacionais ou já operando internamente, e internacionais.

Assim, as premissas do governo quanto tanto ao investimento privado, quanto ao investimento externo, já não se verificavam antes da pandemia. A pandemia da covid-19 aprofundou essas trajetórias, não há investimento privado internacional relevante (fora os chineses) se direcionando para países emergentes, vistos como mercados arriscados, por mais que os países se apresentem como amigáveis ao mercado. De outro lado, não existe apetite do capital privado no país para investir, em função das incertezas sanitárias e políticas, e fundamentalmente da falta de rentabilidade.

Em um quadro como esse abre-se o debate no interior do próprio governo atual entre a dominante visão do Ministério da Economia, avesso a uma ativação do investimento público, e outras visões setoriais, capitaneadas entre outros pela Casa Civil, que apresentam, ainda de forma incipiente, propostas de que a reativação econômica passa por uma maior participação do setor público.

Premissas incapazes

Esse é um pouco o embrião da dúvida que aparece na medida em que a recessão se aprofunda e as premissas do Ministério da Economia vão se mostrando incapazes de viabilizar os necessários investimentos para promover o desenvolvimento da infraestrutura necessária ao funcionamento do país.

Outro ponto onde aparecem possibilidades é na área de políticas industriais. E aqui um exemplo importante é o setor aeronáutico. Em 2018, foi anunciado um acordo de associação entre as empresas aeronáuticas Embraer e Boeing (dos EUA), no valor de mais de US$ 5 bilhões. Pelo acordo a Boeing assumiria de fato o controle da Embraer.

Entretanto, vale lembrar que as empresas maiores do setor vêm operando em mercados turbulentos pela redução do crescimento mundial desde a crise de 2008. A Airbus já havia anunciado o fim de seu programa de aeronaves de maior porte (A 380) em fevereiro de 2019, enquanto a Boeing, após uma série de acidentes, teve que parar a operação de um dos seus novos jatos nos quais havia feito enorme aposta, o modelo 737 Max. Assim, ambas as empresas dominantes no setor de jatos de maior porte tiveram problemas com suas linhas estratégicas, e já enfrentavam momentos difíceis antes da pandemia. A expansão da doença e o travamento da economia, com forte consequência nas viagens aéreas, aprofundou sobremaneira a situação das empresas, que passaram a depender de forte suporte estatal.

Nesse contexto, a Boeing anunciou o rompimento do acordo com a Embraer no fim de abril deste ano. O processo, dessa forma, não apenas não vai se completar, como as empresas voltam à situação anterior.

Oportunidade

Assim, abre-se uma oportunidade de que se volte concretamente a fazer política industrial no setor aeronáutico brasileiro. A Embraer é a terceira maior fabricante de aviões do mundo, cadeia produtiva conectada no Brasil e no exterior, e uma forte ligação de sua área de pesquisa e desenvolvimento com universidades e institutos no Brasil. Como visto, mesmo nos países centrais, empresas como Boeing, Airbus (União Europeia), Comac (China) e outras são fortemente dependentes de suas associações com os Estados nacionais que lhe dão o necessário suporte.

A Embraer atua nos mercados de aviação civil de médio porte, jatos comerciais e aviões militares. Perdê-la como empresa, significa talvez perder hoje a única empresa brasileira que tem capacidade comercial de se mexer na ponta tecnológica em produtos manufaturados. Sua continuidade depende do apoio que possa vir do Estado brasileiro. Se concretamente se verificar esse apoio, a crise terá dado ao Brasil uma oportunidade concreta de reaver para uma estratégia nacional de desenvolvimento um setor que é muito importante. E mostrar que o Brasil pode ser muito mais do que apenas a produção e exportação de produtos primários.


Adhemar S. Mineiro é economista, membro da Coordenação da ABED-RJ (Associação Brasileira de Economistas pela Democracia), doutorando do PPGCTIA-UFRRJ (Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Inovação em Agropecuária da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro), assessor da Rebrip (Rede Brasileira pela Integração dos Povos) e Pesquisador Convidado do Observatório de Políticas Públicas, Empreendedorismo e Conjuntura da USCS.

Este artigo é um resumo da Nota Técnica divulgada na 13ª Carta de Conjuntura do Observatório de Políticas Públicas, Empreendedorismo (íntegra aqui).

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