Proteção para todos

Auxílio emergencial até dezembro beneficiaria trabalhadores e a própria economia

Renda básica estendida teria impactos mais duradouros no consumo, na produção, na arrecadação, no nível de emprego e até no PIB, diz estudo da UFMG

Marcello Casal Jr/Agência Brasil
Marcello Casal Jr/Agência Brasil
Manutenção do benefício por um período maior é necessária para atenuar os impactos nas famílias mais vulneráveis, mas também reduz impactos econômicos negativos

São Paulo – O auxílio emergencial ou renda básica emergencial tem impactos positivos não apenas para quem recebe. O benefício, elaborado pelo Congresso Nacional e sancionado por Jair Bolsonaro em 1º de abril, ajuda a economia de uma forma geral. E se fosse estendido até dezembro, seu potencial para minimizar os efeitos negativos da pandemia na produção nacional e no nível de emprego seria mais efetivo.

A medida de três meses é claramente insuficiente dado o acúmulo de impactos negativos que têm sido observados. E também devido a morosidade que se espera da recuperação econômica, face a característica sanitária dessa crise. A constatação vem de estudo realizado pelo Núcleo de Estudos em Modelagem Econômica e Ambiental Aplicada do Cedeplar, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Nesta terça-feira (26), em entrevista à Rádio Jovem Pan, Jair Bolsonaro afirmou que vai definir com o ministro da Economia, Paulo Guedes, o valor da próxima parcela do auxílio emergencial. “Vai ter a quarta parcela, mas não de R$ 600. Não sei quanto vai ser, R$ 300, R$ 400. E talvez tenha a quinta, talvez seja R$ 200 ou R$ 300.”

Os pesquisadores avaliaram dois cenários com duração distinta do programa de auxílio emergencial. No primeiro, foram analisados os efeitos da política de renda básica emergencial de R$ 600 por 3 meses, de acordo com a lei atual. Já no segundo, foi simulado um cenário alternativo no qual o benefício é estendido até dezembro de 2020, possibilitando mensurar os impactos econômicos a cada trimestre.

Efeitos da economia

O aumento do consumo de bens e serviços pelas famílias gera uma série de efeitos na economia, capturados pelo modelo, de acordo com o estudo. “O primeiro deles é estimular a produção dos setores, principalmente daqueles que detêm maior participação no consumo das famílias que receberam o benefício. A expansão da atividade produtiva requer mais insumos, intermediários e primários, impactando a renda dos fatores, trabalho e capital, e outros setores indiretamente, exercendo rebatimentos sobre a própria estrutura distributiva”, relata o estudo.

Embora o auxílio emergencial tenha efeitos positivos em ambos os cenários, eles são mais efetivos e duradouros quando se analisa sua extensão até dezembro. “No cenário de Renda Básica Estendida (RBE), no qual o benefício é assegurado ao longo de 2020, o aumento imediato do PIB chegaria a 0,55% com a manutenção do auxílio até o fim do ano e 0,31% de impacto permanente até 2021”, aponta a nota técnica. “Em termos do impacto permanente, assegurar o benefício até o fim de 2020, gera um impacto cinco vezes maior ao final de 2021 do que a manutenção por três meses.”

Com o auxílio emergencial vigorando até dezembro, haveria também um aumento na arrecadação fiscal. O efeito estimado na arrecadação de impostos, diz o estudo, seria de R$ 22 bilhões para três meses de RBE e de R$ 128 bilhões para três trimestres.

“Assim, três meses de benefício geraria um montante de receita de impostos que cobre 24% do seu custo, enquanto a manutenção dos benefícios até o fim de 2020 produziria uma compensação de 45% do seu custo.”

Entrevista

Uma das autoras do estudo, a professora no Departamento de Ciências Econômicas da UFMG Débora Freire falou a respeito da importância de se ampliar o programa de renda básica emergencial e também abordou a necessidade de uma reforma tributária que institua um caráter progressivo no sistema brasileiro.

Quais as principais conclusões do estudo a respeito dos impactos do auxílio emergencial nos dois cenários analisados?

No primeiro cenário, em que o benefício dura apenas três meses, nós temos um impacto imediato do programa bastante proeminente na renda das famílias. E que não se restringe às famílias que recebem o benefício. Naturalmente, é muito maior em relação à primeira classe de renda, por exemplo, que recebe até um salário mínimo, onde o impacto é de 45%. Mas existe o que chamamos de vazamento de renda para outras classes. Esse benefício, ao manter o consumo das famílias ou fazer com que o consumo não caia tanto, exerce uma série de impactos na atividade econômica. Dessa forma, a renda gerada vai parar nas mãos de todas as famílias da estrutura distributiva. É uma política assistencial, mas gera impactos de espraiamento para as famílias que não recebem o benefício.

Temos impacto tanto no emprego quanto no investimento e no PIB. Para três meses do benefício, encontramos que ele mitigaria 0,45% do impacto no PIB. O que significa isso? Se o PIB no trimestre, por exemplo, caiu 1%, os nossos resultados sugerem que o benefício mitigaria 0,45% desse impacto negativo de 1%. É um programa que ajuda a minimizar o impacto recessivo dessa crise.

Rodrigo Czekalski/Divulgação DAF/Arquivo ANPr
Impacto de uma política de renda básica emergencial estendida seria positivo e mais duradouro para o PIB brasileiro

Em relação ao cenário estendido, ou seja mantendo-se os benefícios até dezembro, observamos que os impactos são mais proeminentes. E vão se dar tanto no consumo das famílias quanto na renda gerada no processo produtivo e consequentemente no PIB. Encontramos um impacto de 0,55% de mitigação na queda do PIB, caso o benefício seja mantido. E é importante também ressaltar: uma vez o governo mantendo o consumo das famílias, com essa série de impactos indiretos na atividade econômica, mitigando sua queda, temos também impacto na receita do próprio governo.

Quando o governo gasta, está estimulando a atividade econômica e a arrecadação acompanha essa atividade. Esse programa, tanto em três meses como se mantido até o final do ano, mitiga parte da queda da arrecadação de impostos. Nos nossos cálculos, o benefício por três meses geraria uma receita adicional capaz de cobrir em torno de 24% do custo da política e, se mantido até o final do ano, o impacto na receita cobriria 45%. Chamamos a atenção que é preciso fazer esse cálculo líquido do real custo da política. Por exemplo, se mantemos constante o número de famílias recebendo e estendemos o programa até dezembro, estamos falando de um benefício três vezes maior. Mas é preciso projetar o quanto isso vai de fato arrefecer a queda na receita para calcular o efetivo impacto na arrecadação e nas contas públicas. Ou seja, no déficit fiscal.

Nós sugerimos que o benefício seja mantido até o final do ano. Principalmente porque também dá mais tempo para as firmas se ajustarem a essa melhor perspectiva da demanda. Elas estão com uma perspectiva muito ruim em relação à demanda das famílias, com projeção de queda. E se for mantido o programa por mais tempo, mantém-se a demanda e haverá mais tempo para ajustarem a produção e atenderem a essa projeção.

Enquanto o aumento no custo seria três vezes maior, mantendo-se o número de famílias constante, o impacto na economia em termos de arrecadação seria cerca de cinco vezes maior com o benefício até o final do ano. Então, a gente conclui que os benefícios são maiores se manter até o final do ano do que o aumento de custos que se observa.

Outra questão relevante é que essa crise vai de fato afetar os mais pobres e então temos uma tendência de aumento na desigualdade. Vai ser necessário um aprofundamento da proteção social no Brasil mesmo no próximo ano e nos anos subsequentes. Caso contrário, será perenizada uma situação de aumento da pobreza e da desigualdade. Temos que começar a discutir uma renda básica e, para os próximos anos, fazer isso mapeando fontes de financiamento. Pensando em uma reforma tributária progressiva exatamente para custear um programa desses.

Além do impacto no consumo, na produção na arrecadação de impostos existe também impacto na questão do emprego. Se isso fosse aliado a outros tipos de política, por exemplo, planejamento industrial, incluindo a reconversão, a queda no nível de emprego seria ainda menor.

Isso é muito importante, já pensando nessa recuperação após a fase aguda da crise. É até difícil falarmos de pós-crise, porque não sabemos quando ela vai acabar. Tende a demorar, por mais que a ciência esteja avançando bastante. É primordial planejar retomada após esse efeito imediato da crise, e o investimento público será muito importante. Isso porque as expectativas para o investimento privado vão estar bastante desfavoráveis nesse momento.

É importante que o investimento público seja essa força motriz para incentivar os investimentos privados e gerar empregos. Ao mesmo tempo, garantir um nível de renda mínimo para as famílias e o consumo não cair muito. Se os impactos recessivos dessa crise forem aprofundados de forma muito expressiva, o grande perigo é entrarmos numa depressão. E aí teremos muita dificuldade para sair desse cenário recessivo.

Para nós, o governo deve bancar essa política até o final do ano, com aumento de endividamento. Exatamente porque a situação contrária também deteriora as contas públicas. Não agir nesse momento aprofundaria a recessão, com redução de receita de impostos e de arrecadação. Aí o governo piora suas contas públicas do mesmo jeito.

E a redução de receita tributária seria muito pior para estados e municípios, muitos deles endividados e sem poder contar com os instrumentos que o governo federal possui. Por exemplo, a possibilidade de emitir moeda.

Com certeza, essa é outra questão muito relevante. Qual a capacidade de os estados e municípios enfrentarem essa crise? Muitos dependem fundamentalmente das transferências da União e do estado via ICMS, por exemplo. E esses municípios tendem a sofrer muito, porque essa arrecadação está diminuindo. A transferência é uma participação fixa da arrecadação, e eles vão receber muito menos. E a demanda por serviços públicos não diminui, muito pelo contrário, tem aumentado principalmente por conta da demanda por saúde pública.

Você destacou que o estudo mostra que os ricos também ganham com a renda básica emergencial sendo estendida até dezembro de 2020. Por que há tanta resistência não só em relação à renda básica emergencial, mas a todas as políticas de transferência de renda por parte das elites do Brasil?

Essa é uma resistência histórica, uma questão bastante complexa de fato. Políticas de transferência geram vazamentos de renda que vão parar principalmente na classe mais alta. Isso graças aos efeitos indiretos na atividade produtiva tanto em relação aos salários quanto em relação principalmente à renda do capital. Por isso mesmo poderíamos pensar em uma política redistributiva com maior tributação sobre essas classes, e aí estou falando de lucros e dividendos distribuídos a pessoa física, que não são tributados no Brasil. Apenas dois países no mundo não tributam dividendos da pessoa física e nós somos um deles.

Existe uma resistência enorme de se tributar os dividendos na pessoa física Nossa tributação sobre patrimônio é defasada, baixa. E o nosso imposto sobre herança é muito baixo quando comparado a outros países. Existe uma resistência histórica de se mexer na renda da classe mais alta e principalmente a do 1%. A redistribuição que tivemos nos anos 2000 foi muito importante, mas ela foi do meio para a base. Principalmente pelo fato de o nosso Imposto de Renda sobre Pessoa Física não cumprir o efeito progressivo que deveria cumprir exatamente por conta dessas isenções, dessas especificidades na classe mais alta. Do 1% principalmente.

As elites precisam entender que chegou a hora de contribuir de fato para um país que tenha uma desigualdade menor. Desigualdade não é bom para ninguém, gera instabilidade política, falta de coesão social e essas classes também ganham com maior coesão social. É um condicionante histórico nosso essa resistência das elites em serem mais tributadas, principalmente no Imposto de Renda sobre Pessoa Física e no patrimônio. E acho que chegou a hora, e esse é o momento mais propício em toda essa discussão que já vem de alguns anos em relação a essa maior tributação da classe mais alta.

Seria o caso então de discutir uma renda básica implementada de forma permanente, uma ideia que hoje vai muito além do campo progressista, junto com uma reforma tributária que desmonte esse caráter regressivo do sistema brasileiro?

Exato. A grande reforma que o sistema econômico precisa a partir de agora, e ele precisa de uma reforma, é em relação às políticas redistributivas. Há necessidade de distribuir renda, não só no Brasil, no mundo todo se concentra renda. O livro de (Thomas) Piketty fez muito sucesso exatamente por escancarar, mostrar isso de uma maneira empírica, com dados, que esse aumento da desigualdade não era sustentável e de fato não é.

É uma discussão que está avançando, não só no Brasil, em relação a uma renda básica, vários países já estão muito mais avançados nessa discussão do que nós. Mas acho que essa crise vem, primeiro, para reforçar a necessidade de participação do Estado, que ele cumpra sua função redistributiva e estabilizadora. Porque são duas das funções principais do Estado, e nos últimos anos no Brasil – não nos últimos anos apenas, mas principalmente – se intensificou essa ideia de que o Estado é desnecessário e precisamos apenas do Estado mínimo. Essa crise tem essa característica de trazer à tona a sua importância na economia para cumprir com a sua função estabilizadora nas crises.

Acho a discussão da renda básica permanente muito acertada, estamos avançando nessa discussão, como você disse, até mesmo fora do campo progressista, e esse debate vem acompanhado da necessidade de uma reforma tributária para custear um programa desse tipo. E aí é importante que a gente bata nessa tecla, de uma reforma tributária progressiva, porque se formos analisar, essa discussão ainda gera muita resistência, existe uma resistência das elites e até mesmo de alguns técnicos a uma maior tributação das classes mais altas. Precisamos avançar na discussão porque o custeamento dessa renda básica, caso venha a ser permanente, precisa ser progressivo e justo para conseguirmos redistribuir renda e não gerar instabilidade política.

Vou citar uma coluna, do Samuel Pessôa, a respeito de renda básica, na qual fala que é de fato um programa que tem que ser olhado com cuidado, mas apresenta um estudo, acredito, apenas em termos de exercício empírico, que propõe o que chamamos de flat rate, uma alíquota única para o imposto de renda. E seria uma alíquota de 35% que serviria para custear um programa desse tipo. Ou seja, quem está na base da distribuição ficaria isento, não pagaria, receberia uma transferência, mas os demais pagariam uma alíquota única de 35%. É um financiamento que teria problemas porque continuaria aumentando as assimetrias entre a renda do trabalho e do capital.

Com um programa desse tipo, analisando a estrutura do Imposto de Renda sobre Pessoa Física hoje no Brasil, a gente tenderia a colocar grande parte do ônus na classe média e a classe mais alta, principalmente o 1%, contribuiria muito pouco ou quase nada. Principalmente porque a renda dessas classes são prioritariamente renda do capital, e a renda do capital é menos tributada na pessoa física que a renda do trabalho. Para que esse custeamento seja justo, precisamos modificar a estrutura do nosso imposto de renda, principalmente eliminando a isenção da tributação sobre dividendos distribuídos e aumentando a tributação e atualizando e amplificando a tributação sobre o patrimônio.

Confira o estudo completo aqui