liberalismo ou Estado?

Que mundo vai emergir da pandemia de coronavírus?

Para Reginaldo Nasser, da PUC-SP, como no pós-Segunda Guerra, capitalistas defendem o Estado no combate à crise, mas depois vão se rearticular

Marcello Casal Jr/Agência Brasil
Marcello Casal Jr/Agência Brasil
Do ponto de vista das relações internacionais e econômicas, há previsões de que “o mundo não será mais o mesmo”. Será?

São Paulo – O que virá depois do fim da pandemia? Identificada em Wuhan, na província de Hubei, na China, em 1° de dezembro de 2019, com o primeiro notificado em 31 de dezembro, a doença já infectou mais de 1 milhão de pessoas, segundo a Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos. Uma das questões mais especuladas – dos pontos de vista político, social e econômico – desde que o coronavírus se instalou definitivamente no mundo é: o que virá depois?

Do ponto de vista das relações internacionais e econômicas, há previsões de que “o mundo nunca mais será o mesmo”. Segundo uma visão mais otimista, a necessidade óbvia da participação do Estado no enfrentamento da atual crise – caso inclusive de países de governos neoliberais como o brasileiro – aponta para um mundo em que o Estado voltaria a ser protagonista e os governos, mais propensos ao social.

Para Reginaldo Nasser, professor de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), mudanças certamente acontecerão, mas também readequações promovidas pelos chamados donos do capitalismo mundial.

Ele menciona o professor irlandês Fred Halliday, da London School, segundo o qual há duas previsões que sempre estão erradas: as que dizem que tudo vai mudar e aquelas que preveem que não vai mudar nada. Para Nasser, a tendência após a crise da pandemia atual é de um equilíbrio entre projeções mais otimistas e as pessimistas.

Em sua opinião, a guinada de economistas liberais, que de repente passam a enaltecer o Estado, deve ser encarada com prudência. “Do ponto de vista dos liberais e capitalistas, em tempos excepcionais como o atual, essas medidas antiliberais, de intervenção do Estado na economia, têm que acontecer, mas depois que passar não terão mais sentido, para eles”, diz.

Nasser compara o cenário atual com o do pós-Segunda Guerra Mundial, quando “a devastação foi muito pior do que estamos vendo, em número de pessoas mortas e destruição física”. No pós-guerra, o Estado também entrou pesadamente na economia, num período de transição e recuperação mundial, com o Plano Marshall, promovido pelos Estados Unidos, e depois a implementação do Estado do bem estar social europeu, quando a Europa tinha movimentos sociais e de esquerda muito fortes e atuantes.

“Houve uma transição. Mas, depois, as ideias liberais vão paulatinamente entrando novamente no cenário. Na década de 60, os liberais foram gradativamente retomando, até chegarem ao poder com Margareth Thatcher 20 anos depois.”

A primeira-ministra britânica, eleita em 1979, inaugurou o modelo neoliberal como política de governo no mundo, e foi seguida depois pelo presidente norte-americano Ronald Reagan, cujo governo se iniciou em 1981.

“Não que não tenha havido mudanças no mundo após a Guerra, claro que mudou. Mas, também, de forma alguma as ideias liberais acabaram. A França e a Inglaterra continuaram colonialistas. As forças se rearticularam. E, hoje, no nosso país, a gente sabe como está o jogo de forças, e não é fácil”, observa Nasser.

Para ele, as manifestações de economistas como Persio Arida e Armínio Fraga a favor de um Estado mais intervencionista também devem ser vistas com cautela. “Os economistas não são fiéis representantes dos atores capitalistas e financeiros. Eles não são homens das finanças. O Paulo Guedes, sim, é um homem das finanças. Mas, embora pareça óbvio, de repente não se fala que os atores do capitalismo, hoje, são as grandes corporações.”

Na opinião do professor da PUC-SP, o que é importante questionar é até que ponto essas corporações vão continuar com o enorme poder que consolidaram ao longo do século 20. Para ele, não é possível avaliar isso no momento. No entanto, questiona, “após as duas grandes guerras, o que aconteceu com as corporações? Elas cresceram em poder”.

Um bom exemplo são as empresas automobilísticas, durante a pandemia de coronavírus, serem destacadas pelo Estado ou elas mesmas tomarem a iniciativa de produzir respiradores, por exemplo. “Guardadas as proporções, isso aconteceu na guerra também. Produziam tratores e passaram a produzir tanques de guerra. Você tem uma realocação da capacidade produtiva para algumas questões momentâneas.”

Porém, como no pós guerra, isso não quer dizer que os donos do grande capital vão adequar produtos a necessidades sociais. “Nunca vão fazer isso. Quando tem uma lógica de guerra, de uma pandemia, sob a autoridade do Estado, produzem bens de utilidade social, mas depois não vão continuar nessa lógica.”

China, EUA e… Brasil

Enquanto isso, com ou sem pandemia, o protagonismo continua sendo exercido pelos gigantes China e Estados Unidos, país que, hoje, tem o maior número de casos diagnosticados, com mais de 236 mil, segundo a Universidade Johns Hopkins.

Segundo divulgado na imprensa internacional e brasileira nas últimas 24 horas, uma compra em massa de equipamentos chineses pelos Estados Unidos acabou por cancelar a aquisição dos mesmos equipamentos para o Brasil, que, segundo as informações, ficou literalmente a ver navios. Os EUA enviaram à China 23 aviões cargueiros para levar os produtos.

Para Reginaldo Nasser, esse episódio não tem nada a ver com problemas diplomáticos gerados pelo governo Jair Bolsonaro ou seu filho, que acusou a China de ser responsável pela pandemia de coronavírus.

“A China não está preocupada com isso, mas está pensando em mercado. Vai dar bola para o que Eduardo Bananinha (apelido de Eduardo Bolsonaro) falou? Na minha perspectiva isso são coisas de grandes potências, que pensam e agem como tal. Da mesma forma com que disputam, também se articulam.”

Sobre o episódio, Nasser menciona o sociólogo norte-americano  Erving Goffman, da década de 50. “Para ele, há o front stage e o back stage. O front stage é o que a gente enxerga primeiro. A China não faria essa negociação com os Estados Unidos de graça.  Deve ter alguma coisa em jogo que a gente não está vendo.”