Mundo doente

Economistas veem crise de efeitos imprevisíveis e temem segunda onda da pandemia

Belluzzo, Rosa Maria Marques, Antônio Correa de Lacerda e Eduardo Fagnani alertam que impactos na economia mundial exigirá presença mais forte do Estado

Marcello Casal Jr./ABR
Marcello Casal Jr./ABR
Crise questiona visão de 'ajuste fiscal a qualquer preço', representada por Paulo Guedes

São Paulo – “Avassaladora”, “trágica” e sem precedentes, a crise desencadeada pelo coronavírus terá impacto ainda incalculável na economia mundial e obrigará a uma presença maior do Estado, contrariando os dogmas liberais. Reunidos em debate virtual nesta quarta-feira (8), promovido pela Editora Contracorrente, economistas alertam ainda para as prováveis consequências sociais.

“À primeira vista, é uma crise muito mais chocante e com desenvolvimento mais rápido do que, por exemplo, a de 1929”, diz o professor e ex-ministro Luiz Gonzaga Belluzzo, lembrando a quebra da economia norte-americana a partir do final dos anos 1920. Naquele período, observa, o “fundo do poço” chegou anos depois, em 1933. “Aqui, o rompimento das cadeias, no sentido monetário, das relações monetárias entre empresas, bancos e famílias ou trabalhadores foi muito brusco, muito rápido.”

Em outra referência histórica, Belluzzo cita o transatlântico Titanic, que naufragou em 1912, para afirmar que não “bons e maus” nessa história. “Afunda todo mundo junto. É um sistema de relações que tem a sua própria dinâmica. Só há uma forma de reconstituir esse sistema: é através da ação do Estado. Banco Central, política fiscal.”

Luiz Gonzaga Belluzzo, Rosa Maria Marques, Antônio Correa de Lacerda e Eduardo Fagnani

No mato sem cachorro

Professora titular da Faculdade de Economia da Pontifícia da Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Rosa Maria Marques avalia que a crise “não tem paradeiro” enquanto não se descobrir uma vacina para a covid-19, será um contínuo “abrir e fechar” de atividades da economia mundial. Ela citou dados divulgados ainda nesta quarta, apontando queda de 6,6% na economia francesa no primeiro trimestre e previsão de retração de 4,2% na Alemanha neste ano. “Avassaladores”, resumiu.

“A crise é avassaladora, vai destruir a capacidade de recuperação. Se não tiver um Estado muito forte que rearticule no futuro, eu acho que estamos no mato sem cachorro”, afirma Rosa Marques. Ela vê dificuldade de se estimar a queda no Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro em 2020 – uma projeção feita há alguns dias na Fundação Getúlio Vargas, apontando -4,4%, já nem lhe parece tão negativa. “De repente vai ser 8%”, arrisca.

A professora observa que, mesmo antes da pandemia, já havia sinais de crise na economia mundial, mas o que ocorreu agora foi uma parada brusca, que “se retralimenta”. Diretor da Faculdade de Economia da PUC paulista, Antonio Corrêa de Lacerda concorda e observa que há alguns anos a China passou a crescer menos, ainda que em nível alto, provocando “um novo normal” na economia global, que não retornou aos níveis anteriores ao da crise deflagrada em 2008.

O que restou da indústria?

Agora, a mesma China foi, inicialmente, o epicentro da crise sanitária. Um país que em período recente “se tornou a fábrica do mundo”, como define Lacerda. A primeira consequência foi uma queda de demanda no país asiático, com reflexos em outras forças da economia mundial, Europa e Estados Unidos. “Primeiro, um choque de oferta, a capacidade de produção dos países fica abalada”, afirma o economista, apontando efeitos no Brasil, que vem passando por longo processo de desindustrialização, deixando o país dependente da venda de matérias-primas, como grãos e minérios.

“Nas últimas décadas, o Brasil reprimarizou sua pauta de produção. O que restou da indústria brasileira depende basicamente de insumos fabricados na China. E não estou falando nem de produtos sofisticados, mas de luvas, máscaras…”, afirma Lacerda. ” um crime que se cometeu contra a realidade brasileira. Pela ausência de políticas industriais, pela falta de um projeto.”

Com os mercados financeiros “em pânico”, diz o professor, “não há para onde correr, a não ser para o velho e bom título norte-americano”, o que leva à valorização do dólar. Ele considera difícil fazer qualquer projeção, achando mais provável uma queda de 3% a 4% no PIB deste ano. Mas chama a atenção para o crescimento da vulnerabilidade social, com crescimento do desemprego no sentido amplo, o que inclui desalento e subutilização da mão de obra. “Vai ser uma tragédia para a sociedade brasileira.”

Mais longa e mais grave

Professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Eduardo Fagnani diz ter “intuição” de que a crise será mais longa no Brasil – e trará consequências mais graves. Ele acredita que o país esteja vivendo “a primeira onda do coronavírus”, que apanhou pessoas das classes A e B, que viajavam pelo mundo, e que passaram a seguir as orientações de isolamento social.

“Grande parte ficou em casa, confinada. Certamente para elas essa medida correta vai surtir efeito. Mas eu tenho receio da segunda onda, que vai pegar classe D, E”, alerta Fagnani. Esse contingente não têm as mesmas condições de adotar a quarentena, acrescentou.

“Como é que se você pode, na prática, fazer um isolamento se você tem 27 milhões de pessoas que moram em residências com mais de três pessoas por cômodo? Como pode pedir que as pessoas lavem a mão se tem 25% da população que não tem água em casa?”, questionou o economista. “A questão central do Brasil é a desigualdade.”

Momento de disrupção

Para Belluzzo, houve demora, particularmente no Brasil, para assumir responsabilidades. Na atual equipe econômica, ele considera o atual presidente do BC, Roberto Campos Neto, “um sujeito muito pragmático”, enquanto os demais “parecem muito aturdidos”. “Tirando o Bolsonaro, ninguém pode ter certeza”, ironiza, para em seguida chamar atenção para a gravidade do momento: “Estamos diante de uma disrupção”.

Belluzzo cita o Brasil de 1942, durante a 2ª Guerra Mundial, quando Getúlio Vargas criou um “comitê de mobilização nacional” para tentar organizar a economia. Isso pode e deve acontecer agora, atingindo a indústria, por exemplo, para se dedicar à reconversão de algumas atividades – a fim de se produzir itens como luvas e respiradores. “Alguns países estão fazendo, e nós estamos demorando muito. Os militares, que estão aí para defender a pátria, podiam estar nesses grupos de trabalho, ajudando a reconstituir esse tecido que está rompido.”

O mundo passou por uma “divisão social” do trabalho, observa Rosa Marques. Segundo ela, 94% do insumos para medicamentos são feitos na Índia. “Temos um problema pra fazer medicação aqui. Existe possibilidade de uma segunda onda. Enquanto não houver vacina, você não supera o problema.” A quarentena, observa a professora, é uma tentativa de fazer com que o sistema de saúde fique em condições para enfrentar essa demanda.

E o debate volta para a questão do papel do poder público. “Os Estados, no plano da economia mundial, mais cedo ou mais tarde, estão sendo empurrados, obrigados a assumir medidas. Não tem medida adequada para o tamanho da crise que vem. O que existe é a minimização do problema.”

Bem-estar social

Ela observa que apenas no primeiro dia de habilitação para a ajuda emergencial aprovada pelo Congresso, mais de 20 milhões de pessoas se inscreveram. Ajuda emergencial no Brasil – em um dia e meio, se habilitaram mais de 20 milhões de pessoas. “Mesmo eles, os ultraneoliberais são obrigados a entrar.”

Lacerda lembra que após a crise de 2008 os Estados nacionais adotaram pacotes de alívio fiscal e injetaram dinheiro na economia. Isso exige interromper políticas que já vinham sido implementadas há algum tempo e hoje são representadas pelo ministro Paulo Guedes. “Para injetar recursos, é preciso romper um velho dogma que no Brasil vinha sendo repetido à exaustão: a ideia do ajuste fiscal a qualquer preço. Há um conflito de ordem ideológica, teórica, da visão do papel do Estado no processo. Segundo, há um manejo de gestão que é muito limitado. Os preceitos defendidos por Guedes, baseados por Chicago, nem Chicago mais os defende.”

Mesmo países europeus enfrentam dificuldades para enfrentar a crise, do ponto de vista da oferta de alguns produtos. “Onde é que funcionam as cadeias produtivas? Funcionam em toda parte e nenhuma.” Ele se mostra favorável ao controle de capitais. “A turma da grana vai começar a sair, atraída por esse fenômeno da valorização do dólar”, diz.

Para Fagnani, é preciso recompor a capacidade de tributação do Estado, com taxação dos mais ricos. “Evidente que isso não está na agenda agora, mas tem de entrar na agenda para 2021. A médio prazo, também ver ter de reestruturar o Estado social brasileiro. Essa crise deixa bastante evidente a importância do Estado de bem-estar social. Por último, é impossível enfrentar o pós-crise com essa estrutura do tripe macroeconômico (inflação, câmbio, meta fiscal). Segundo ele, nenhum país adota esses conceitos de forma tão inflexível como o Brasil.