Entreguismo

Aloysio Biondi e ‘O Brasil Privatizado’, 20 anos depois

Há duas décadas, um dos pioneiros do jornalismo econômico do país escreveu o livro sobre as privatizações que virou best seller e pautou o debate sobre patrimônio nacional

Arquivo Pessoal/Reprodução

Em seu livro, Aloysio Biondi deixou lições para entender processo privatista de governo Bolsonaro

Brasil de Fato – Vinte anos atrás, o jornalista Aloysio Biondi alertava, ao publicar o clássico “O Brasil Privatizado”, que o patrimônio do país, construído ao longo de décadas com recursos do povo brasileiro, estava sendo dilapidado. E, pior, que o governo estava usando recursos do Estado — ou seja, da população, mais uma vez — para financiar esse crime de lesa-pátria.

Ao se relembrar a publicação do livro, que vendeu mais de 170 mil exemplares e gerou amplo debate sobre o tema em todo o país, é difícil não pensar nas primeiras privatizações realizadas pelo governo Bolsonaro, que retomam os problemas, distorções, abusos e favorecimentos denunciados por Biondi (1936-2000) no governo Fernando Henrique Cardoso (1994-2002).

Lançada em abril de 1999 pela Editora da Fundação Perseu Abramo, e publicada novamente em 2014 pela Geração Editorial, a obra de Aloysio Biondi sobre o programa de desestatizações segue ecoando no debate político e econômico nacional. Especialmente porque, 20 anos depois, o país insiste em não superar essa página de sua história.

Para o cientista político Antonio Lassance, “a discussão sobre privatizações no Brasil não só não está superada como reproduz a mesma lógica utilizada desde sempre. Não apenas nos anos 90 do século passado. Na minha opinião, ter descoberto e analisado essa lógica é o que torna o livro de Aloysio Biondi, “O Brasil Privatizado”, um clássico e um livro que permanece extremamente atual”.

Em 2009, o historiador Flamarion Maués registrou no artigo “Dez anos sem Aloysio Biondi, o jornalista que desnudou as privatizações no Brasil“, todo o processo de produção – e da repercussão da obra. Maués, que foi o editor do livro em 1999, destacou em depoimento à equipe do Brasil de Fato, em alusão aos 20 anos da publicação, que a obra “explica de uma forma bem clara e sintética” mas ao mesmo tempo “de forma muito documentada” todo o capítulo das privatizações vividas pelo país após a redemocratização.

Entre as questões elucidadas por Biondi no livro, estão, por exemplo: a) o uso de moedas podres, ou seja, títulos da dívida pública sem liquidez, no pagamento das privatizações, b) o sucateamento de parte das empresas a fim de permitir vendas a preço de banana, c) os investimentos pesados em outras estatais, a fim de garantir que o comprador recebesse um belo “filé mignon” para suas atividades, d) as dívidas das empresas que ficaram com o governo, e) os empréstimos “de pai pra filho” feitos pelo governo após a privatização – ou mesmo para o comprador conseguir realizar seus lances, f) as estatais entregues com muito dinheiro em caixa e g) os estudos com subavaliações para os preços mínimos de venda.

Atualidade

De acordo com o economista Marcio Pochmann, a nova onda de vendas de ativos do governo federal marca o início de um “projeto neocolonialista e fiscalista” – e que atuará de um modo ainda mais destrutivo e sem qualquer estratégia ou fundamentos quanto a seus resultados para o futuro do país.

Pochmann explica que “o que acontecia nos anos 90 – que de alguma forma se assemelha ao que estamos vivendo hoje – é que havia uma espécie de unidade na burguesia instalada no Brasil de defender basicamente o pensamento único”. E esse pensamento único “se reproduzia nos meios de comunicação” (também exemplo do que estamos a vivenciar hoje no país). “E nós passamos a ter um documento sólido, muito bem elaborado”, que ofereceu e fundamentou uma outra perspectiva à sociedade sobre o tema – e também ao Partido dos Trabalhadores.

A vendagem excelente e a repercussão do livro nos debates e na imprensa fizeram com que a obra tivesse certa influência e algum papel político naquela conjuntura, conforme nos registra Flamarion Maués. Para ele, o livro “realmente ajudou a configurar um pouco o movimento de oposição e de contestação àquele projeto de privatização” e “o Aloysio assumiu um pouco o papel desse porta-voz dessa denúncia das privatizações, com todas as viagens que ele fez para divulgar o livro, os lançamentos”.

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Biondi fazia pesquisa minuciosa e sabia ‘ler’ números

Sucateamento estratégico

Lassance resgata um dos aspectos abordados por Biondi no livro, contando a lógica que perpassava boa parte das privatizações analisadas na obra: “Primeiro você tem um setor econômico no qual supostamente a iniciativa privada deveria se encarregar de fazer investimentos necessários. Só que isso não acontece”, lembra ele. Assim, “o setor público em algum momento entra ou como carro-chefe ou como parceiro fundamental”. Posteriormente, “aparecem estatais e grandes financiamentos do BNDES para suprir essa lacuna”.

O cientista político destaca que tais “setores são estratégicos para o país, o que significa dizer também que são altamente lucrativos”. Lassance ressalta que “por contingências fiscais – e, no Brasil, problemas de ordem fiscal são estruturais, pois os governos, salvo raras exceções, são máquinas de produzir déficit –, a privatização de estatais se torna um alvo privilegiado”.

“Para que as privatizações se tornem mas fáceis de serem feitas, o governo produz déficits nessas estatais e as torna sucateadas para que sejam vendidas a preço de banana, se tornando facilmente arrematadas por grupos empresariais nacionais ou estrangeiros”, alerta o pesquisador.

Retorno privatista

Para Flamarion Maués, o balanço de 20 anos do lançamento do livro traz à tona o balanço sobre as privatizações que o Brasil vivenciou nesse período – e que atravessa de certa forma ainda –, tornando o debate trazido pela obra bastante atual. O historiador destaca a retomada das privatizações pelo novo governo de Bolsonaro, “que possui um discurso privatista, anti-Estado, anti-participação do Estado nos setores fundamentais para o desenvolvimento do Brasil”. Para ele, esse novo processo tende a ocorrer de “uma forma muito predatória para os interesses nacionais”.

Como exemplo, há a questão da privatização dos aeroportos, cujo principal vencedor do leilão realizado em março pelo governo brasileiro foi a estatal espanhola Aena, uma empresa controlada pelo governo da Espanha.

Conforme explica o jornal espanhol El País: “A estatal espanhola Aena venceu a disputa para administrar seis aeroportos no Nordeste, considerado o lote mais atrativo do conjunto de concessões de 12 aeroportos. A Aena, que tem 51% das ações controladas pelo Estado espanhol, pagará ao Governo brasileiro 1,9 bilhão de reais pelo direito de explorar essas seis instalações durante os próximos 30 anos”.

De acordo com a Folha de S. Paulo, o bloco do Nordeste era considerado o mais importante da concorrência. Esse conjunto é integrado pelos aeroportos do Recife (PE), Maceió (AL), Aracaju (SE), Juazeiro do Norte (CE), João Pessoa (PB) e Campina Grande (PB). A Folha destaca que “a espanhola Aena é operadora do aeroporto de Madri-Barajas, um dos principais da Europa”. Segundo o jornal, “o Aeroporto Internacional Gilberto Freyre, no Recife, é considerado a joia do bloco leiloado” e conta “com a maior movimentação de passageiros do Norte e do Nordeste”. O aeroporto registra lucro anual de R$ 130 milhões.

Ou seja, se a Aena irá pagar cerca de R$ 2 bilhões ao governo brasileiro para explorar os aeroportos por 30 anos, isso equivale a cerca de R$ 65 milhões em média por cada ano do contrato (além de parte da receita a partir de 2025). O aeroporto do Recife, sozinho, gerava o dobro disso de lucro anual. Ou, indo um pouco mais adiante no raciocínio: o aeroporto do Recife sozinho poderia gerar R$ 4 bilhões de retorno ao Brasil – na ponta, ao seu povo, ao menos em tese – em 30 anos. Por metade disso, a estatal espanhola irá assumir não apenas o aeroporto do Recife – mas sim aquele e outros cinco equipamentos no Nordeste.

Neocolonialismo fiscal

Para o economista Marcio Pochmann, uma das novidades do atual ciclo privatista consiste em que, agora, “de fato, é uma perspectiva neocolonialista” a nortear o processo. “Primeiro acreditando que o moderno, o melhor, sempre está fora da ‘colônia’. Então, ou é a metrópole Portugal, ou posteriormente é a Inglaterra. E até mesmo os Estados Unidos”, pontua.

Pochmann, que atualmente exerce o cargo de presidente da Fundação Perseu Abramo (FPA), avalia que “não tem estratégia alguma, não tem nenhum planejamento por trás do que está sendo feito”. O economista explica que nos anos 1990, um dos argumentos centrais do receituário neoliberal era que “o setor privado é mais eficiente que o setor público” e que seria necessário privatizar a fim de liberar recursos do Estado para investimentos sociais, por exemplo. Assim, logicamente, as empresas não eram vendidas ou concedidas para empresas estatais.

“Pelo menos do ponto de vista de perspectiva privatizante, havia então uma estratégia, uma ideologia, que partia do pressuposto da ineficiência estatal”, compara. “A transferência do patrimônio deveria ser para empresa privada, já que esta seria em tese mais competitiva, mais eficiente etc.”

Atualmente, segundo ele, não há estratégia, mas apenas “uma identificação de que não cabe ao Estado atuar” onde quer que seja – nem em investimentos empresariais, nem em políticas sociais.

Para o professor, não interessa ao atual governo “a perspectiva da produção, da internacionalização, da valorização do mercado interno”, mas sim “a perspectiva neocolonial de acreditar que a associação ao ‘Império’, como é o caso dos Estados Unidos, vai nos trazer benefícios maiores do que ter uma posição independente e soberana”.