Apesar da crise...

BC faz besteira com juros; 80% do IPCA nada tem a ver com a Selic

Economista Amir Khair atribui à concentração de renda a responsabilidade por distorções que permitem às empresas lucrar em momento de retração

Khair: “É que o Brasil é forte, é um país fortíssimo. Fosse outro, já teria arrebentado”

São Paulo – Quem acompanha as manchetes de economia teve nos últimos dias motivos para desconfiar do uso da palavra ‘crise’, tão propalada pelos meios de comunicação. Houve até quem fizesse piada com a disposição dos jornais em usar uma muleta de raciocínio para explicar a avalanche de informações desnudando os lucros crescentes das grandes empresas no país: “Apesar da crise…”, diziam as manchetes, “… cenário de investimentos no Brasil é promissor para 2015”, “… Riachuelo vai inaugurar mais 40 lojas em 2015”; “…vendas da Toyota crescem 3% no primeiro semestre”, “… montadoras já anunciaram R$ 9 bi em investimentos” e assim por diante.

Destaque mesmo nessa profusão de notícias são os bancos, que levam a melhor com a crise. O Itaú Unibanco anunciou lucro líquido no semestre passado de R$ 11,71 bilhões, contra R$ 9,318 bilhões nos primeiros seis meses de 2014; o Bradesco segue a mesma linha, com lucro superior a R$ 4,5 bilhões por trimestre, anunciando resultados praticamente ao mesmo tempo em que adquiria a operação brasileira do HSBC por US$ 5,2 bilhões.

Nenhuma dessas notícias, no entanto, expõe ao leitor o centro da questão que, mais uma vez, é a velha e má, e por que não dizer cruel, concentração de renda no Brasil. “No Bolsa Família, por exemplo, você tem uma conta perto de R$ 28 bilhões por ano, enquanto a conta de juros é de R$ 440 bilhões por ano. Esse dinheiro vai para o andar lá de cima, enquanto o Bolsa Família vai para o andar de baixo. Você faz uma distribuição de renda às avessas com essa política de déficit”, afirma o economista Amir Khair.

“O grosso da dívida é originado pelo excesso de taxa de juros, não é pelo contrato em si de uma dívida, mas pelo fato de você ter para qualquer aplicador em títulos do governo os benefícios dessas taxas. É uma coisa que vem, há muitos anos, em valores altos: a Selic chegou a 44,95% com a figura do Armínio (Armínio Fraga, presidente do Banco Central no segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso)”, lembra Khair, nesta entrevista à RBA.

Qual a dimensão da crise no país hoje, visto que de um lado você tem inflação, desemprego e queda de poder aquisitivo e, de outro, lucros crescentes em grandes corporações, enfim, que crise é essa?

Acho que você tem duas situações bem distintas. A primeira situação é a das empresas não financeiras que, de forma geral, dependem de consumo para consequentemente ter lucro. Quando você tem um enfraquecimento do consumo, que é o que está ocorrendo, essas empresas comercializam menos, produzem menos e têm menos lucros. Essas são, digamos, o conjunto das empresas não financeiras. Estou falando que há exceções e setores em expansão e outros que estão piores do que esta média de que falo.

Você tem um segundo grupo, que é o financeiro, e tem a seu favor, em primeiro lugar, a Selic extremamente elevada. Os ganhos de tesouraria desses bancos devem estar puxando bastante o lucro apresentado. Entrando dentro do balanço, é provável que uma parte boa do lucro tenha advindo do ganho da tesouraria (que são os ganhos decorrentes da aplicação em títulos públicos que têm como base de remuneração a taxa Selic, hoje fixada em 14,25% ao ano, com ganho real, acima da inflação, próximo de 5%). A outra parte vem das tarifas, extremamente vantajosas para os bancos. E uma terceira parte de empréstimos. Os juros subiram, seja pessoa física ou jurídica. O setor financeiro, principalmente bancos, estão se aproveitando dessa situação, ganhando mais do que antes.

Então, você tem uma situação em que o país está perdendo massa salarial, você tem desemprego crescente, e cria-se um faturamento menor para o conjunto das empresas não financeiras e, consequentemente, menos lucro. E se a gente ver todas as estatísticas, desde as estatísticas setoriais, que dizem a respeito do faturamento, como também de arrecadação do governo. A arrecadação do governo vem caindo fortemente. Isso espelha perda de faturamentos e perda de lucros.

Bom, então existem duas realidades. Uma de crise e uma de não crise, dependendo do ângulo que se olha a economia…

Exatamente, tem um setor que escapa disso, que é o setor financeiro. Ele está lucrando com a crise.

A taxa de juros tem sido elevada sob o argumento de combater a inflação. Isso está correto?

A taxa combate a inflação, mas é uma parte menor dela. Ela combate a inflação por meio do que a gente chama de “âncora cambial”. Nos últimos anos, a Selic elevada vinha atraindo capital especulativo internacional e isso traz dólares para o país. Então ficam muitos dólares por aqui e com isso você tem mais oferta de dólar de forma artificial em relação ao real. E o real ficou valorizado, apesar da desvalorização agora. O real valorizado barateia importações. O canal de ação do Banco Central através da Selic elevada é esse direcionamento para o que chama de bens comercializáveis, eles que são sujeitos à concorrência externa. Então, por exemplo, um empresário brasileiro que aumentar o preço, digamos, do óleo de cozinha, não conseguiria sustentar esse preço porque tem um óleo de cozinha mais barato. Você segura os preços de todos os produtos que têm concorrência externa.

Mas essa cotação do dólar acima de R$ 3 não estaria em uma situação inversa a essa que você está comentando?

Ainda é pouco, o dólar vai para R$ 4 e pouco. Veja o seguinte: vou dar só um argumento simples. Está todo mundo com receio do que o Federal Reserve (o Banco Central dos Estados Unidos) vai fazer, se vai aumentar o juros lá nos Estados Unidos e em algum momento os capitais vão fluir de volta para lá. Isso vai desvalorizar todas as moedas em relação ao dólar. O real recebeu uma superdosagem de fortalecimento por parte do BC justamente para prevenir essa alteração de depreciação. Como ele fez isso? Ele torrou em um ano e pouco US$ 114 bilhões em swaps cambiais. Por quê? Ele queria segurar o real no valor de US$ 1 para R$ 3,20. Agora não segura mais. Chegou em um ponto que todo o mercado falou que US$ 114 bilhões é um excesso. É quase um terço das reservas.

O que pode acontecer?

A inflação que pode vir com a depreciação do real, o BC está tentando combater através da Selic mais elevada. As outras inflações não passam, como tenho dito, pela porta do BC. Cerca de 80 % do IPCA não tem nada a ver com Selic. O setor de serviços, por exemplo. Ninguém empresta para serviços, não está ligado nesta questão, o serviço é muito mais comprado à vista. Você vai em um restaurante, você vai ao barbeiro, você paga a empregada doméstica a vista e por aí vai. Os serviços dependem da lei da oferta e da procura. Você tem milhões de ofertantes de serviços e milhões de demandantes, que é a população. Nos últimos quatro anos você teve uma inflação de serviços, em média, de 8,5% ao ano. Nos anos anteriores ao Lula, você sempre tinha os serviços abaixo da inflação média. Quando o Lula bota 40 milhões de novos consumidores, você tem de repente uma demanda de serviços violentíssima. Que não foi acompanhada pela oferta. Mas qual a tendência natural? A tendência natural é que vai cada vez mais aparecer gente interessada em prestar serviço. É um mercado atrativo para quem está na indústria, outro que está desempregado, vai lá e monta um empreendimento. Então, essa quantidade de oferta tende a crescer e se aproximar da demanda.

Então, não é o caso da inflação de demanda…

A inflação de serviços não depende nem do BC, nem do governo. Querer que o governo faça alguma coisa interferindo nisso só se ele mandar desempregar todo mundo. Ele corta a demanda. De uma certa forma estamos longe ainda. Então, qual o peso dos serviços no IPCA? Se você considerar a composição do IPCA, você vê que serviços pesam com 35%, o que não depende nem do Banco Central e muito menos do governo.

Um outro componente da inflação está nos alimentos, que também não tem a ver com a Selic. A inflação de alimentos depende fundamentalmente da variável do clima.

E a consequente sazonalidade…

Nos últimos quatro anos da Dilma, pouca gente fala, houve uma inflação de alimentos fortíssima. Seja por excesso de chuvas em determinados momentos ou por falta. Dilma amargou uma inflação média anual de 9% nestes quatro anos. Nem Lula nem Fernando Henrique tiveram problemas com isso. E o que Dilma fez como resposta a isso foi segurar o preço da energia elétrica e dos combustíveis. Assim, entupiu empresas com a Petrobras e a Eletrobras de dívidas. A banca internacional está rindo até hoje porque emprestou o dinheiro, compreende? Essa posição da Dilma foi lamentável.

Mas e os componentes da inflação, que você estava comentando?

Você tem os alimentos pesando 25% no índice, e aí não é culpa da Dilma. A alimentação você só controla se tiver estoques reguladores, e acho que isso o governo parece que fez bem, assim como no estímulo à produção agropecuária. Creio que faltou um ingrediente que tem um pé municipal, dado pelas políticas de abastecimento, em que você procura aproximar produtor e consumidor. Assim, você barateia o alimento porque reduz o interveniente onerante, que são os atravessadores. O cara produz uma caixa de tomate no campo, recebe R$ 10 e isso chega na porta do mercado por R$ 30. Essa interveniência é pesada e o governo deveria entrar nesse miolo, até estimulando prefeitos, municípios, fazendo propaganda, botando a mídia para defender essas posições, enfim, é trabalhar firmemente essa questão do abastecimento, ter políticas para lidar com a inflação de alimentos.

Então, já falei serviços, 35%, alimentos, 25%, e os chamados preços monitorados, que são energia elétrica, combustíveis, a tarifa do transporte coletivo, água e esgoto, e são decisões de governo federal, estadual e municipal. Portanto, nada que tenha a ver com Banco Central. E aí você tem 20%. Então, 35 de serviço, 25 de alimentos e 20 de preços monitorados são 80%; é por isso que eu digo que 80% da inflação brasileira não passam na porta do Banco Central.

O Banco Central usa a Selic e cria distorções; nas contas internas, 90% do rombo fiscal do país se deve a juros e só 10% são o famigerado superávit primário, que para mim é uma besteira. A Selic faz o dólar ficar fora do lugar, e aí você tem um rombo nas contas externas. O país faz um custo de carregamento das reservas internacionais da ordem de R$ 150 bilhões por ano, e isso é violentíssimo porque essas reservas custam Selic e são aplicadas em títulos do tesouro americano, que rendem 2% ao ano. Você tem um diferencial de 12 pontos sobre uma marca de US$ 380 bilhões de reservas, então, você faz as contas do custo desse carregamento e chega aos R$ 150 bilhões por ano.

O ajuste fiscal obrigatoriamente se impõe?

Não, o ajuste fiscal já morreu, já foi enterrado no dia 22 de julho (quando o governo reprogramou as metas de superávit primário). Mas o ajuste veio para corrigir as barbaridades que a equipe do Guido Mantega fez. E o que ele faz de errado? Seguinte: primeiro, não houve controle orçamentário, é como se você fosse fazendo as despesas sem equilibrar com as receitas. Quando você faz isso, você sacaneia o pobre, porque aparentemente você está atendendo o pobre, mas na prática você está endividando o país, aumenta a emissão de títulos e quem lucra com isso são os rentistas.

No Bolsa Família, por exemplo, você tem uma conta perto de R$ 28 bilhões por ano, enquanto a conta de juros é de R$ 440 bilhões por ano. Esse dinheiro vai para o andar lá de cima, enquanto o Bolsa Família vai para o andar de baixo. Você faz uma distribuição de renda às avessas com essa política de déficit. E isso não é entendido até por alguns setores da esquerda, o que é grave, porque é um negócio na cara, que se você estivesse em outro país, com taxas de juros razoáveis, isso não se aplicaria.

O governo gastou uma barbaridade, acima do que poderia, e errou as previsões de crescimento econômico e metas de resultado fiscal, ferrou com o câmbio, porque deixou o real ficar supervalorizado, arrebentando as contas externas, e freou o crescimento econômico com isso, e não combateu as taxas de juros. Fez tudo errado. E começou a fazer as barbaridades contábeis. Todo mundo que conhece um pouco de contabilidade pública detecta o problema, e aí entrou no ridículo, perdeu a confiança, ficou em um descrédito.

Mas esse momento em que estamos vendo os juros altos não é diferente da época do Fernando Henrique…

Naquela época era pior…

Do ponto de vista da economia, se esse pagamento de juros não é sustentável, dá para dizer até quando o Brasil aguenta?

É que o Brasil é forte, é um país fortíssimo. Fosse outro, já teria arrebentado. O país tem uma grande riqueza no subsolo, tem um clima fantástico, uma agricultura brilhante, enfim, tem água doce, condições climáticas, uma diversificação industrial, um setor de serviços sofisticado, é um país que tem um grande potencial e não explora isso direito. Você tem um potencial de consumo muito superior a esse que está aí, quer dizer, o país está aguentando essa coisa toda, mas a dívida está subindo.

Essa dívida é legítima?

É difícil você falar se é ou não é. Ela é legítima no sentido de que foi constituída formalmente. Pode ser que se você fizesse uma auditoria encontrasse problemas. Mas no grosso essa dívida está ocorrendo por duas razões: uma, por você gastar mais do que arrecada, e outra por praticar taxas de juros abusivas. Como a taxa de juros é uma decisão do próprio governo, a dívida é legítima. O grosso da dívida é originado pelo excesso de taxa de juros, não é pelo contrato em si de uma dívida, mas pelo fato de você ter para qualquer aplicador em títulos do governo os benefícios dessas taxas. É uma coisa que vem, há muitos anos, em valores altos: a Selic chegou a 44,95% com a figura do Armínio (Fraga).

E sobre a crise lá fora, que vem desde 2008, jogando para baixo as economias europeias?

A Europa ainda está andando de lado. Escapou da crise financeira, mas está com um ritmo ainda muito devagar. Só tem a Alemanha que escapa da paralisia que a coisa está, com desemprego altíssimo ainda, especialmente afetando os jovens. Você tem a China desacelerando bastante, está se readaptando, passando de uma economia muito puxada por investimentos para uma economia mais voltada para o lado do consumo, mas ainda com um monte de problemas internos, tendo de melhorar as condições dos trabalhadores, porque a proteção social é baixíssima, tem uma precariedade de mão de obra muito grande, e você tem os Estados Unidos, que estão falando que seria a próxima locomotiva da economia, mas também estão ainda muito devagar e com passos incertos.

A favor os Estados Unidos tem a descoberta do shale gas (gás de xisto), que baixa o custo da energia barbaridade, e está atraindo muito investimento e eles estão se tornando quase autossuficientes em petróleo, que era um calcanhar de Aquiles na economia. Os Estados Unidos estão em uma posição mais forte agora, melhor, mas não são capazes de levar o mundo a sair da crise. E a América Latina toda, que depende muito de commodities, está com problemas. Os países todos diminuíram o ímpeto do crescimento. Então, você tem um componente externo, sim, que atua desfavorecendo todas as economias, sem exceção, inclusive os Estados Unidos, porque você tem um mercado mundial mais restrito. Você não tem crescimento das exportações mundiais, mas algum crescimento, ainda que pequeno.

Se houver uma alta de juros nos Estados Unidos, isso vai atrair capitais que hoje estão investidos aqui?

Um pouco vai sim.

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