Órgão da ONU vê ‘austeridade’ de países ricos como ‘tiro pela culatra’

Receita de nações em desenvolvimento com salários mais altos e estímulo a investimentos produtivos seria mais efetiva. UNCTAD defende ainda regulação de mercados

O economista Alfredo Calcagno, oficial de Assuntos Econômicos da Unctad, lança via teleconferência o Relatório de Comércio e Desenvolvimento 2011 (Foto: Elza Fiúza/ ABr)

São Paulo – Diante dos desdobramentos da crise econômica, os governos da Europa e dos Estados Unidos caminham em direção a um conjunto de medidas descritas como de “austeridade”. Mas segundo Relatório de Comércio e Desenvolvimento 2011 da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), as instabilidades pelas quais passam a economia mundial são resultado da falta de regulação do mercado financeiro e de sua liberalização irresponsável.

Desde a eclosão da crise em países como Portugal, Espanha, Irlanda e Grécia, todos esses países passaram a cortar despesas, especialmente em programas sociais, como aposentadorias e auxílios a desempregados. A pauta de redução do Estado, classificada como “medidas de austeridade”, visam a reduzir gastos do setor público para evitar colapsos de endividamento.

O problema, segundo o documento da UNCTAD divulgado nesta terça-feira (6), é que o cenário é resultado da falta de mecanismos para coibir a especulação financeira, que provoca prejuízos por interferir artificialmente na cotação de moedas e de títulos da dívida. Em vez de reduzir despesas do setor público e diminuir a intervenção do Estado na economia e em programas sociais, o organismo da ONU lembra da experiência de países desenvolvidos, como o Brasil.

Dados do órgão indicam que a busca por reduzir o déficit fiscal – quando as despesas do governo são maiores do que as receitas – ao mesmo tempo em que tenta acalmar os mercados financeiros pode ser “um tiro pela culatra”. A avaliação é de que cortes nas despesas públicas terão impacto no crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) – soma das riquezas produzidas por uma nação. Uma evolução menor implica menos receita com impostos, aumentando a necessidade de mais endividamento.

“As economia desenvolvidas estão fazendo políticas para não crescer”, alertou o economista argentino Alfredo Calcagno, da equipe que elaborou o relatório. Ele participou de teleconferência transmitida de Paris para a sede da Comissão Econômica para América Latina e o Caribe (Cepal) em Brasília. A sugestão seria aproveitar os gastos públicos para fomentar um “ciclo virtuoso” na economia.

O relatório sustenta que nações como Brasil, Índia, China e Turquia conseguem crescer em padrões semelhantes aos encontrados antes de 2008 por terem apostado, como estratégia para superar a crise, em salários mais altos e uma política fiscal sustentada. Parte desses países passou relativamente ilesa à instabilidade de 2008 e 2009. O próprio consumo das famílias e o investimento das empresas instaladas vem sendo o principal motor para manter taxas relativamente elevadas de crescimento.

Regulação

“A crise destacou também um séria falha na crença pré-crise na liberalização e na autorregulação do mercado”, avisa o relatório. “Mercados financeiros liberalizados encorajam especulação excessiva – o que equivale a um cassino – e instabilidade. Inovações financeiras serviram à própria indústria em vez do interesse social. Ignorar essas falhas aumenta o risco de que venha outra crise, possivelmente ainda maior.”

A UNCTAD defende ainda “políticas inovadoras” para regular os mercados, criticando a excessiva volatilidade das taxas de câmbio, da financeirização dos mercados de commodities e da nova regulação do sistema financeiro internacional. “A recuperação global irregular torna imperativo abordar os elementos inacabados da agenda financeira global.”

“A regulação precisaria ser mais firme com as instituições ‘grandes de mais para falir’ e incorporar uma dimensão macroprudencial, incluindo exigências anticíclicas de capital e recursos de controle de capital para lidar com os fluxos de capital volátil”, sugere o relatório. Durante a crise de 2008 e 2009, grandes bancos e mesmo montadoras automotivas em países ricos foram alvo de intervenção e de injeção de recursos públicos. O argumento era de que uma eventual quebra dessas empresas custaria ainda mais aos cofres do Estado.

Mas mesmo se o setor financeiro fosse mais bem regulado, isso não garantiria automaticamente mais emprego nem tornaria o crédito mais acessível a pequenas empresas, lembra o relatório. Por isso, a reestruturação defendida pela UNCTAD ao sistema financeiro envolveria reduzir riscos sistêmicos e melhorar a utilidade socioeconômica da atividade. “A reestruturação financeira deveria mirar sistemas financeiros nacionais mais diversificados, com maior papel para instituições públicas e cooperativas, limites para instituições gigantes e uma clara separação entre atividades bancárias de investimento e comerciais.”

A divisão recomendada pela entidade foi eliminada nos Estados Unidos durante a década de 1990. Com isso, segundo críticos da medida, criou-se espaço para riscos maiores aos bancos, já que as instituições acabaram se expondo mais com o objetivo de incrementar lucros. Ao operar no mercado financeiro e, ao mesmo tempo, atendendo a empresas e famílias, essas empresas chegaram a agir de forma insustentável economicamente, eventualmente até comprometendo a sobrevivência no longo prazo por buscar lucros maiores em curtíssimo prazo.

O relatório foi lançado nesta terça, no escritório da Comissão Econômica das Nações Unidas para América Latina e Caribe (Cepal), em Brasília. O economista Alfredo Calcagno, Oficial de Assuntos Econômicos da UNCTAD, foi o responsável pela apresentação.

A íntega em inglês está aqui.