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Os olhos do Chile: as histórias de violência e abuso da polícia nas manifestações

Segundo o Instituto Nacional de Direitos Humanos (INDH), são 241 pessoas com lesões oculares irreversíveis, resultado de um tipo de ação policial que tem impressionado pela brutalidade

creative commons
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O resultado da violência foi mais protesto, além de mais críticas ao governo Piñera e aos abusos da polícia

São Paulo – Os levantes no Chile contra o governo de Sebastián Piñera foram reprimidos com violência pela polícia nacional (os chamados carabineros). De acordo com o Instituto Nacional de Direitos Humanos (INDH), são 241 pessoas com lesões oculares irreversíveis, resultado de um tipo de ação policial que tem impressionado pela brutalidade.

A violência estatal foi respondida com mais protestos, além de novas críticas ao governo Piñera e aos abusos da polícia. Campanhas solidárias começaram a surgir pelo país. O grande número de pessoas que perderam a visão, total ou parcialmente, chocaram a comunidade médica, que se levantou em apoio aos manifestantes. Grandes movimentos cidadãos também passaram a criticar duramente a repressão, como a campanha “Los Ojos de Chile”, que busca apoio psicossocial e financeiro aos mutilados pelo Estado.

Na terça-feira (26) foi a vez de a organização internacional Human Rights Watch (HRW) se manifestar. Membros da HRW se reuniram com Piñera para apresentar um extenso relatório intitulado Chile: Chamado urgente a uma reforma policial em razão dos protestos. Para embasar o relatório, foram recolhidos 442 avaliados do Instituto Nacional de Direitos Humanos do Chile ao Ministério Público local para denunciar policiais por lesões, tratos cruéis, torturas, abusos sexuais, homicídios e tentativas de homicídios.

Twitter/@colmedchile

Funcionários do Hospital de Antofagasta se manifestam contra a violência policial

Em guerra

Piñera chegou a declarar que seu governo estava em guerra ao aplicar uma situação de Estado de emergência no país, em 18 de outubro. “Estamos em guerra contra um inimigo poderoso, implacável, que não respeita a nada e nem ninguém”, disse, sobre seu próprio povo. Muitos dos feridos alegam não estar agindo de forma violenta durante os protestos e que, mesmo diante da repressão, não deixariam de se manifestar. O estado de emergência foi suspenso 10 dias depois, com um mea culpa do presidente, assegurando que trabalharia em reformas sociais.

“Tenho agora um período de reabilitação, tenho que ir atrás de uma prótese, que vai ter um custo. Tenho que juntar dinheiro porque, neste estado, não posso trabalhar. Se tiver que me manifestar novamente, faria, enquanto houver uma desigualdade muito grande neste país”, afirma um dos afetados, em material especial do The New York Times.

O fato é que o povo chileno se levantou contra um governo que pratica políticas neoliberais de incentivo aos grandes empresários e deixa sem assistência boa parte da sua população. Uma das maiores críticas dos chilenos tem relação com a Previdência no país. Lá, não existe sistema de previdência pública. Esse modelo, em parte responsável pelo atual colapso social, é o defendido abertamente pelo ministro da Economia brasileiro, Paulo Guedes, que inclusive segue políticas econômicas similares às chilenas do período ditatorial. Políticas amplamente rejeitadas pela população que as viveu.

A grande expectativa no país, agora, é em relação à elaboração de uma nova Constituição, que seja mais abrangente em termos sociais, que busque isonomia e a eliminação das desigualdades. A lei maior daquele país ainda é dos tempos do ditador Augusto Pinochet (1973-1990).


Vídeo “O Disparate”, de produção do The New York Times, com vítimas da violência policial no Chile:

Abusos

A HRW entrevistou mais de 70 pessoas para a elaboração do relatório entregue a Piñera. Entre as pessoas ouvidas, manifestantes feridos e/ou abusados, policiais (alguns também feridos durante os atos), médicos, advogados, professores, representantes da sociedade civil e autoridades de órgãos do Judiciário, além de ministros. “A HRW tem provas consistentes de que os carabineros utilizaram força de maneira excessiva em resposta aos protestos e feriu milhares de pessoas, independentemente se participaram de atos de violência ou não”, concluiu o órgão.

Além dos tiros com escopeta que feriram muitos olhos chilenos, os casos de violência contemplam atropelamentos com veículos oficiais, incluindo blindados, tiros com armas letais e golpes de cassetete. Todos estes abusos tão agressivos que provocaram 26 mortes. Ainda estão sob investigação outras 18 mortes que, até o momento, não se podem atribuir a responsabilidade ao Estado.

Foram 15 mil pessoas presas. Neste ponto, começa outro drama do colapso social chileno. São 341 denúncias de tortura ou tratamento desumano por parte dos policiais e o número alarmante de 74 denúncias de abusos sexuais de policiais contra manifestantes.

“Uma advogada chilena contou para a HRW um caso aonde, apesar de que homens e mulheres haviam sido detidos sob as mesmas circunstâncias, os policiais obrigaram apenas as mulheres a tirarem as roupas. Também mencionou outros casos em que policiais tocaram os genitais das mulheres”

O que a HRW notou, a partir dos dados oficiais, é que os militares chilenos tiram as roupas de manifestantes em delegacias, algo proibido no país. Mesmo ilegal, a prática foi percebida como comum pelo órgão. E os policiais tiram as roupas de mulheres e crianças mais do que a de homens. As estatísticas apontam para esse dado.

Histórias da violência

Esta reportagem selecionou alguns casos de violência relatados para a HRW.

César Muñoz Acebes/HRW

Marlene Morales Canales, 33 anos

Marlene Morales Canales, 33 anos: Se aproximou de uma multidão próxima de sua loja em Santiago no dia 19 de outubro, acompanhada de sua filha de 14 anos. Viu policiais a 20 metros de distância, escutou disparos e sentiu o impacto no olho direito. “Perdi a visão imediatamente. Tinha muito sangue”, disse. Depois dos disparos, os policiais começaram a soltar gás lacrimogênio. Os médicos disseram que não há possibilidade de recuperar a visão no olho direito.

Ronald Barrales, 36 anos: Participava de uma manifestação no centro de Santiago no dia 11 de novembro, quando um grupo de pessoas começou a jogar pedras em um blindado da polícia. Barrales tentou passar pelo local caminhando quando um policial abriu a porta do passageiro do veículo, apontou uma arma de uma distância de oito metros e disparou. Os projéteis atingiram seu abdômen, o peito e o olho esquerdo. Os médicos disseram que não há possibilidade de recuperar a visão perdida.

Jorge Ortiz, diretor da Unidade de Finanças do Instituto Nacional dos Direitos Humanos: Estava devidamente uniformizado com as vestimentas da equipe do serviço. Recebeu seis projéteis nas costas, glúteos e perna esquerda, enquanto corria da polícia, que disparava em uma zona sem manifestação.

César Muñoz Acebes/HRW

Juan Gabriel García Barco, 25 anos

Juan Gabriel García Barco, 25 anos: Passava por uma zona de manifestação no centro de Santiago no dia 11 de novembro, enquanto ia para o trabalho. Chegou em uma ponte onde manifestantes lançavam pedras contra policiais que bloqueavam a via, quando um projétil acertou seu olho. Na hora, notou sangue escorrendo pelo rosto. Acredita ter sido um estilhaço de uma bomba de gás lacrimogênio. Uma testemunha disse que um policial atirou em Juan a apenas cinco metros de distância.

Colégio Liceu 7 de Santiago: No dia 5 de novembro, os alunos da escola votaram que deveriam participar das manifestações por seu povo. Então, duas meninas crianças ficaram feridas. A Defensoria acusou um comandante da polícia de violação dos direitos humanos neste caso.

Tiros em casa: No dia 19 de outubro, um adolescente de 16 anos estava dentro das dependências do seu condomínio em Santiago. Policiais entraram no local e dispararam contra ele, que correu para dentro de casa. Foi atingido por mais de 10 projéteis nas costas e costelas.

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