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Emicida: reatar os elos da sociedade pelo amor, para combater o triunfo do ódio

"A atual conjuntura é o triunfo do ódio, por isso precisamos refletir de um jeito não belicoso. Temos que trazer todo mundo para a conversa", diz o rapper

Júlia Rodrigues/Divulgação
Júlia Rodrigues/Divulgação
'AmarElo' vai além de um álbum, nas palavras deles, é um experimento social, com diversas camadas. Desde exaltar quem acorda antes do sol nascer para levar sustento para casa até a superação da depressão

São Paulo – Mergulhar no continente africano, em 2015, fez o rapper Emicida mudar sua perspectiva sobre alguns pontos de sua vida e a forma de se relacionar com o mundo. Classificando a viagem como uma “faculdade humana”, o artista explica que uma dessas mudanças foi reduzir o espírito belicoso e usar o sentimento positivo como um ponto de construção. A partir disso, surgiu seu novo álbum AmarElo, lançado no começo deste mês.

O novo disco oferece afeto aos ouvintes, além de utilizar a serenidade e a calma como expressão principal. Em meio ao triunfo do ódio, na atual conjuntura do país, o objetivo do rapper é reatar os elos da sociedade e trabalhar a humanidade de cada um. “Se só nos organizarmos em torno do “não”, o resultado é tudo isso (a vitória do fascismo)”, explica ele, que ressalta também a importância de criar um limite de respeito dentro desse elo. “Só tem um bagulho: vidas racistas não importam”, acrescenta.

AmarElo vai além de um álbum, nas palavras dele, é um experimento social, com diversas camadas. Desde exaltar quem acorda antes do sol nascer para sustentar sua casa até a superação da depressão. Entre os diversos pontos de partida criados no disco, um deles foi ocupar o Theatro Municipal de São Paulo com duas apresentações – os primeiros shows de rap feitos no local. “Minha vó, com 80 anos, nunca tinha pisado aqui. Estamos restituindo a humanidade”, afirma.

Entre as muitas camadas que trazem a boa energia, Emicida também coloca o dedo na ferida em canções como Ismália, baseado no poema de Alphonsus Guimarães, e Eminência Parda. As faixas densas trazem a questão do racismo, a “maldição do quase” e os 111 tiros da polícia militar que executaram cinco jovens em Costa Barros (RJ). “(O disco) É como se você tivesse a oportunidade de observar a estrela, que também faz a gente observar toda uma escuridão que a cerca”, explica.

Leia a entrevista completa:

Em Hoje Cedo, você narrou algumas crises causadas pelos holofotes e colocou isso em AmarElo. O quanto essa postura cobrada dos rappers, de serem sempre fortes, atrapalhou no combate a esses demônios?

A primeira vez que a gente lida com esses demônios, eles que lidam conosco. A gente não tem material de vivência para analisar como frieza e dizer que é uma depressão. Pelo contrário, a gente nasce numa realidade violenta, cresce num ambiente violento, onde os familiares batem na gente para nos afastarmos da violência. Nessa conta, é muito difícil você sair daí sem acreditar na violência.

Até onde esse pensamento trouxe a gente? Estamos em 2019, com a desigualdade de gênero crescendo, ao contrário do que a bolha faz a gente querer acreditar. A desigualdade está intensificando e esmagando quem tem menos condição. Portanto, não acho que essa conta fecha positivamente se a gente acreditar só na violência. Só que demorei anos para chegar nessa conclusão e reconhecer a nossa vulnerabilidade.

O feminismo é uma ideologia que luta pela igualdade dos gêneros, mas o machismo não é uma ideologia, é um erro de cálculo que fez sentido há milhares de anos atrás, mas que deixou de fazer há três milhões de anos. O referencial que temos de início da humanidade é uma mulher, na África. Se Eva existiu, ela era uma mulher preta, mas inverteram a pirâmide de ponta cabeça.

Hoje Cedo fala sobre vitória, mas um aspecto sombrio da vitória. Ela não é uma relação do sonhador com o sonho, de forma livre e pura, é o contrário. É o trabalhador dentro de uma indústria, com todas as exigências e o ambiente dela. Você vai se sentindo cada vez mais sufocado.

Comecei a fazer essa música quando estava viajando em turnê na Europa. Lembro desse momento e me vem a mesma sensação ruim. Eu estava vendo mais os camaradas da firma do que a família. Éramos um monte de moleques que passaram a vida de forma invisível, mas, do nada, todo mundo queria saber quem era a gente. Isso mexe com a sua vaidade e o seu ego. A minha gratidão é que todo mundo aqui é pé no chão, o que manteve a gente longe de tretas inúteis.

A gente precisa falar sobre essa cultura de violência, de como aprendeu que isso era ser homem, mas isso fragiliza. O saldo disso é o aumento do aumento da desigualdade de gênero, enquanto, ao mesmo tempo, o grupo que mais se suicida são os caras. Então, olhando de 2019, Hoje Cedo é uma análise sobre isso. Porém, na época, eu só estava pensando que estava no palco, mas que não estava feliz. Todo mundo longe da família, mas perto do sonho. O sonho não era o oásis que imaginávamos.

Você já disse que a cruz que carrega é a da liberdade. Em duas faixas de AmarElo, você fala que o ‘sol só vem depois’, mas também sobre ser impedido de estar próximo ao sol, quando ele vem. Assim como a felicidade do negro é “quase”, a liberdade do negro também é?

O fato de as pessoas tombarem na esperança de ver o sol, não impede de acordarmos nos outros dias e lutarmos. O problema é essa maldição do “quase”. A gente tem uma cultura de desperdício muito grande. Quanto potencial vai terminar no túmulo por conta da incapacidade do Estado brasileiro de criar um ambiente onde ele se desenvolva? Por que a minha vó tem 80 anos e a primeira vez que ela pisa no Theatro Municipal é hoje? Esse é o quase, é restituir a humanidade.

Quando a gente fala de o “sol vir depois” é sugerir o entendimento da grandeza das pequenas coisas. O sol, como o astro rei, vem depois das tiazinhas que saem às 4h para trabalhar. Essa é a ordem natural das coisas.

E quando falei que a liberdade é a minha cruz, é porque a vida é feita de escolhas. Eu lido muito bem com as minhas, por mais que o ambiente em que estou não lide bem com elas, desde quando decidir fazer a mixtape com 25 faixas a R$ 2, os caras tiravam nós. A liberdade não é um fardo, são escolhas, mas que nem sempre fazem a gente sorrir.

O álbum tem uma virada de atmosfera em Ismália e Eminência Parda. Do discurso mais agradável, da boa energia, para lembrança do que é a vida da pessoa negra. Esse choque de realidade mostra como é difícil responder àquela pergunta feita em Obrigado, Darcy: O que resta é forca ou amor?

O paradoxo da Obrigado, Darcy é a definição do que é nascer no Brasil. Você, no caminho daqui para sua casa, vai encontrar um monte de mazela da desigualdade, vai pensar em como lidar com isso e no que você vai acreditar, se gente é essa proximidade da forca ou do amor.

AmarElo é mais complexo que álbum, mas chamamos de experimento social, porque ele é um filme escondido em cada faixa. Se a gente olha superficialmente, temos uma impressão de que a densidade se apresenta a partir da Ismália. A questão é: quando o mano recebe o beijo e ouve “Deus te acompanhe, pretinho, volta pra nós como um camisa 10 após o gol”, a reflexão que devemos fazer é: quem tem medo de perder o ente querido quando sai para trabalhar? Então, se você observar toda a luminosidade do AmarElo, ela é uma escolha. É como se você tivesse a oportunidade de observar a estrela, que também faz a gente observar toda uma escuridão que a cerca.

No começo do ano, estava no Japão e conheci o estúdio Ghibli, porque sou muito fã do Hayao Miyazaki. Na obra dele, tudo tem vida, do pássaro até o que está fora do primeiro plano. Olhar o trabalho dele foi pegar o projeto AmarElo e fazer com que todas as camadas tivessem vidas.

No álbum anterior, você trata da reverberação do ódio e raiva. Você já falou que deu um passo atrás para refletir e criar o novo disco. A viagem para a África foi esse momento de passo para atrás?

Foi mais anterior ainda. Quando escuto o disco anterior, a palavra que vem é “diálogo”. Acho a raiva legítima, o ódio é legitimo, mas não podemos ser sequestrados pelo ódio. Aliás, o ódio é um direito que a gente não tem na sociedade, porque quando externarmos ele, seremos silenciadas.

Mergulhar no continente africano, onde tivemos essa oportunidade, foi como fazer uma faculdade humana. Não foi de “humanas”, humana mesmo. Isso me fez observar outra característica da negritude que é a relação não belicosa com a realidade. O candomblé, por exemplo, não é uma religião de guerra.

É preciso entender a grandiosidade de tudo que te cerca. Um exemplo é a Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos da Penha, que é a única igreja paulistana de costas para a Catedral da Sé. Ela foi construída pelas pessoas sequestradas na África, trazidos para cá e escravizados. Se você responder de forma pouco cuidadosa, vai achar que fizeram isso porque odiavam o sistema dos brancos, mas eles forram tão grandiosos que a fizeram de frente para o sol, reverenciando a natureza para serem beneficiados pela luz dela. É uma outra perspectiva.

Como reatar os elos, numa sociedade cada vez mais esgarçada socialmente, principalmente pelo fascismo? E não só na sociedade, mas nas favelas, que possuem uma massa que apoiou o fascismo do Bolsonaro?

Precisamos fazer uma reflexão sobre o que construímos. Essas pessoas que você mencionou, elas estão convictas ou estão num mar de desinformação. Se entre nós há uma série de discórdias, imagina fora da bolha.

O racismo quer te silenciar de um milhão de jeitos. Se você é um preto que ascendeu financeiramente, não pode mais falar sobre miséria, mas é o contrário disso. A minha grandiosidade é o fato de ocupar esse espaço que estamos, sem esquecer de onde eu vim. Sou exceção de uma regra que mata gente pra caralho.

Exaltar o sentimento positivo é um ponto de construção. Se só nos organizarmos em torno do “não”, o resultado é tudo isso que você elencou. A atual conjuntura é o triunfo do ódio, por isso precisamos refletir de um jeito não belicoso. Temos que trazer todo mundo para a conversa, todo mundo.

No fim das coisas, só tem um bagulho: vidas racistas não importam. Precisamos ter um ponto também de respeito e relação com a realidade, mas sem ser sequestrado por esse sentimento. Essa confusão só beneficia o ódio. Se queremos ser um ponto de luz para onde as pessoas miram e caminham, precisamos colocar a nossa verdade sobre a mesa e mostrar que é um copo de água limpa que queremos compartilhar.

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