Fazer o quê?

Ex-secretário da Saúde de SP lava as mãos a respeito de acordo suspeito de consórcio de remédio popular

David Uip declarou à CPI da Furp que o acordo já estava assinado quando ele assumiu a pasta, mas reconheceu ter achado estranho o combinado

Divulgação/Furp
Divulgação/Furp
Fabricante de remédios populares do governo de SP, alvo de esquema de propina envolvendo construtoras O caso corre em segredo de Justiça e todos os envolvidos negam participação no esquema. O Ministério Público não se manifestou sobre a demora em apresentar denúncia sobre o caso

São Paulo – O ex-secretário de Estado da Saúde David Uip disse hoje (8) que estranhou o acordo judicial aceito pela direção da Fundação para o Remédio Popular (Furp) para pagar um reequilíbrio econômico de R$ 22 milhões à empreiteira Camargo Corrêa, pela construção da fábrica na cidade de Américo Brasiliense. “Eu não pude fazer nada, a secretaria só foi comunicada após o acordo firmado. Tudo me incomodou, tanto que eu troquei toda a direção”, afirmou Uip, durante sessão da CPI da Furp na Assembleia Legislativa de São Paulo. Uip assumiu a pasta 15 dias após o acordo, em setembro de 2013, no governo de Geraldo Alckmin (PSDB).

O ex-secretário evitou apontar indícios de conduta ilícita na efetivação do acordo e ressaltou que seu antecessor na pasta, Giovanni Guido Cerri, também disse não ter conhecimento do acordo. “A mim foi comunicado que um acordo com júbilo, que era ruim para o estado e ficou bom. A direção da Furp concordara com o acordo. A mim caberia ingressar com uma nova ação, que poderia ser entendida como litigância de má fé. E eu não conseguiria nada, porque era um acordo judicial”, explicou.

O pedido de reequilíbrio econômico foi feito originalmente em 2008, pelo consórcio formado pelas construtoras Camargo Corrêa, OAS, Schahin Engenharia e Planova, mas não foi atendido pelo governo paulista. O pleito deveu-se aos atrasos na liberação de projetos de climatização pela Furp.

As empresas do consórcio ingressaram com uma ação indenizatória na Justiça paulista, em 2012. As construtoras conseguiram a vitória judicial em 2013 e foi fixada uma multa no valor de R$ 18,9 milhões, referente aos 16 meses de atraso nas obras – valor corrigido monetariamente para R$ 22 milhões.

A empresa não recorreu da decisão por supostamente ter havido pagamento de propina a seu superintendente, Flávio Vormittag.

Acordo

O ex-gerente executivo da Camargo Corrêa na construção da segunda etapa da unidade fabril da Furp, em Américo Brasiliense, no interior de São Paulo, Martin Wende, relatou ao Ministério Público ter sido procurado pelo engenheiro Ricardo Luiz Mahfuz, à época funcionário da estatal, propondo um acordo para que a estatal não recorresse da decisão judicial.

Para isso, o consórcio deveria pagar 10% do valor ao então superintendente da Furp e atual coordenador-geral de Sangue e Hemoderivados do Ministério da Saúde, Flávio Vormittag (cerca de R$ 1,9 milhão). Mais R$ 400 mil ao próprio Mahfuz, por intermediar o esquema de corrupção.

A Furp realmente não questionou a decisão judicial e o processo foi encerrado em 6 de março de 2014, com a assinatura do acordo judicial. Cada empresa teria de arcar com um percentual relativo à sua participação no consórcio. No entanto, com o início da Operação Lava Jato, os pagamentos foram interrompidos.

E até hoje a Camargo Corrêa não conseguiu o termo de encerramento da obra. Isso porque, segundo relatou Wende, toda vez que solicitavam o documento eram cobrados do pagamento do restante da propina, tanto por Mahfuz quanto por Adivar Cristina, ex-diretor técnico da Furp.

As informações do esquema de corrupção foram confirmadas em delação assinada por Emílio Eugênio Auler Neto, então diretor Comercial e Institucional Sul e Sudeste da Camargo Corrêa, que era chefe de Wende. Os acordos são assinados pelo promotor de Justiça Marcelo Batlouni Mendroni, do Grupo Especial de Combate a Delitos Econômicos (Gedec) do MP.

O caso corre em segredo de Justiça e todos os envolvidos negam participação no esquema. O Ministério Público não se manifestou sobre a demora em apresentar denúncia sobre o caso.

Mahfuz foi ouvido pelos deputados da CPI da Furp e negou as acusações de corrupção. “Sempre tive uma relação normal com o consórcio responsável pela obra e nunca houve nenhuma situação de me oferecerem coisa alguma”, afirmou. Adivar Cristina também prestou depoimento à CPI, negou envolvimento e disse desconhecer qualquer “tipo de esquema de corrupção dentro da Furp”.

Vormitag disse que o acordo foi aprovado pela diretoria da Furp e que era vantajoso para o governo estadual. “O acordo celebrado pela FURP com o consórcio foi vantajoso para a empresa e minha participação na sua negociação seguiu absoluta normalidade”, disse ao jornal O Estado de S. Paulo.

Suspeitas

A CPI debruça também em suspeitas de que Cerri trocou favores com a empresa farmacêutica EMS, que detém a concessão da unidade. Após deixar a secretaria, Cerri abriu uma empresa chamada Clientech Participações, com capital social de R$ 1 mil, tendo como sócios dois executivos da indústria farmacêutica EMS. Um mês e meio depois, a NC Investimentos, controladora da EMS, comprou R$ 10 em ações da Clientech e investiu R$ 1,499 milhão na empresa recém-criada.

A empresa foi aberta em 29 de julho de 2016, quase três anos depois de Cerri deixar a secretaria. Na ficha cadastral mantida na Junta Comercial de São Paulo, no ato de fundação da empresa aparecem como sócios dele o empresário Leonardo Sanchez Secundino, dirigente da NC Investimentos; Julio Cesar Borges, executivo da EMS; e Eleuses Vieira de Paiva, médico e ex-deputado federal. Em 15 de setembro do mesmo ano, a acionista Auvergne Administradora de Bens e Participações vendeu sua parte à NC Investimentos, que fez o aporte de quase R$ 1,5 milhão na sequência.

Cerri foi secretário da Saúde do governo Alckmin entre 4 de janeiro de 2011 e 14 de agosto de 2013. Na sua administração, a gestão da fábrica da Furp foi licitada e a vencedora foi a EMS, que também foi a única empresa a apresentar proposta. O ex-secretário da Saúde deixou o cargo apenas 15 dias depois da publicação do resultado da concorrência que garantiu à EMS o contrato da PPP. Na época ele alegou que queria se dedicar mais à vida acadêmica, como professor da USP. Atualmente, a concessão causa um prejuízo anual de R$ 56 milhões aos cofres públicos, segundo dados da Furp.

A comissão também investiga o cumprimento da concessão da fábrica à farmacêutica EMS, iniciada em 2013, que revelou-se desastrosa. A expectativa para o contrato de R$ 2,3 bilhões era de que a empresa fizesse R$ 130 milhões em investimentos nos cinco primeiros anos da concessão, que tem prazo de 15 anos. Além disso, deveria obter licenças e produzir 96 medicamentos para fornecer às unidades de saúde estaduais e municipais. Passados seis anos, a empresa só produz 13 medicamentos, pelo dobro do preço de mercado, e os investimentos ficaram em torno de R$ 70 milhões.

A EMS – que criou uma personalidade jurídica específica para gerir o contrato com a Furp, a Concessionária Paulista de Medicamentos (COM) – cobra ressarcimento de R$ 65 milhões do governo paulista, por conta da distorção entááre os preços de mercado – que o governo pagava – e os previstos em contrato. Para compensar o problema, o governo Alckmin passou a fazer repasses fixos de R$ 7,5 milhões por mês à empresa, independentemente da quantidade de medicamentos produzida. A empresa ainda é isenta de ICMS e não tem gastos com distribuição, que é feita pelo Executivo.

O contrato também previa que a EMS assessorasse a Furp na obtenção de registros de medicamentos, de forma que a tecnologia ficasse de posse do governo paulista. Mas a empresa apenas liberou licenças que já pertenciam a ela mesma, reduzindo o investimento e impedindo a transferência de tecnologia à estatal.

Além disso, a CPI da Furp investiga denúncias de corrupção na construção da fábrica, também feitas por Wende. No relato, ele conta que, após a aprovação do 5º termo aditivo do contrato para a construção da fábrica, em 25 de agosto de 2008, soube por Carlos Henrique Barbosa Lemos, então diretor regional da construtora OAS, que o consórcio teria de efetuar um pagamento de R$ 2 milhões a João Batista, assessor do ex-secretário de Estado da Saúde, Luiz Roberto Barradas Barata, morto em 2010. Desse total, R$ 1 milhão foi pago.

A construção da fábrica da Furp teve início em janeiro de 2006. O consórcio formado pelas construtoras Camargo Corrêa, OAS, Schahin Engenharia e Planova venceu a licitação. A fábrica foi entregue em 2009, no entanto, nunca atingiu a plena capacidade de produção de medicamentos.