Devastação

Amazônia em chamas: o legado de Chico Mendes em risco no Acre

Reserva extrativista batizada com o nome do líder seringueiro não passa imune pelo aumento no número de queimadas na região amazônica. Modificações na vegetação podem inviabilizar o extrativismo no futuro

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Chico Mendes: liderança que mostrou ao mundo a necessidade do desenvolvimento sustentável

São Paulo – De acordo com os dados do Programa de Queimadas do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), o mês de agosto de 2019 foi o que contou com o maior número de focos de incêndio na Amazônia nos últimos nove anos. Na comparação do período entre 1º de janeiro e 31 de agosto, a elevação foi de 111%. Nesse contexto, o estado do Acre é um dos mais afetados.

De acordo com boletim divulgado pela secretaria do Meio Ambiente do estado, foram registradas 2.158 queimadas do início do ano até 21 de agosto, situação que levou o governador Gladson Cameli a decretar estado de emergência no dia 23. Um outro aspecto preocupantes é o número de focos de incêndios em áreas protegidas. Nesse quesito, a Reserva Extrativista (Resex) Chico Mendes lidera, com 99 registros no período.

As reservas extrativistas estão entre os principais legados da luta do líder seringueiro Chico Mendes, assassinado em 1988. Foram concebidas de acordo com o conceito de reforma agrária para as comunidades locais, que têm o usufruto da terra e participam da preservação da floresta. A primeira resex, criada no governo de José Sarney, foi a de Alto Juruá, no Acre, 1989, vindo no ano seguinte a criação da reserva que leva o nome de Chico, também no estado, e as de Rio Ouro Preto, em Rondônia, e Rio Cajari, no Amapá.

Embora ainda tenham índices de desmatamento e de queimadas muito inferiores ao entorno não protegido, as unidades de conservação como as resex também começam a sofrer com maior intensidade os efeitos da devastação. “As queimadas sempre aconteceram na Amazônia como um todo porque são uma das principais ferramentas de transformação das florestas em áreas agrícolas. Mas o que estamos vendo ao longo do tempo é que essa ferramenta tem sido utilizada com mais frequência e esse uso tem sido tão generalizado que as pessoas têm tido menos cuidados no seu controle”, aponta a professora da Universidade Federal do Acre e doutora em Ciências Florestais Tropicais pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia Sonaira Souza da Silva

Segundo a pesquisadora, tanto imagens de satélite como estudos de campo apontam que o aumento no número de queimadas decorre de ações planejadas e feitas para a chamada conversão da terra. “Quando se faz o desmate, ficam ali muitos restos de vegetais, aquelas árvores que não são aproveitadas para nenhum uso madeireiro, e todo o resto precisa ser eliminado para a agricultura. Diria que em 90% dos casos o fogo é a ferramenta que está fazendo esse processo de limpeza da área após o desmatamento. Mesmo tendo tecnologias já desenvolvidas por órgãos de assistência técnica e instituições de pesquisas ainda não têm sido aplicados de forma ampla”, pontua ela, destacando que ainda é possível detectar desmatamentos feitos neste ano que não foram queimados. “Então, há uma chance muito grande de nas próximas semanas o fogo continuar sendo uma preocupação geral.”

A floresta que não volta a ser a mesma

“No estado do Acre a unidade de conservação que mais tem sido afetada pela questão do fogo é a Reserva Extrativista Chico Mendes, a segunda reserva a ser instituída. O que temos visto ao longo do tempo é que o fogo ali sempre foi uma ferramenta de controle mas ganhou força principalmente depois de 2005, quando tivemos nossa maior seca no estado e a reserva teve o equivalente a 50 mil hectares de área desmatada e impactada pelo fogo naquele ano. Depois desse grande episódio, vemos um recorrente impacto do fogo nas áreas agrícolas, mas também dentro da floresta”, aponta.

E o cenário em 2019 mostra um agravamento deste quadro. “Neste ano, o mapeamento que temos feito mostra que a unidade de conservação mais afetada é a Chico Mendes, disparado em relação a outras do estado. Só em 2019, em área agrícola queimada, temos 1,7 mil hectares, somente dentro da reserva, e quando olhamos para o fogo que sai do controle e entra para a floresta, temos pelo menos 700 hectares de floresta impactada pelo fogo naquela região”, relata. “É um cenário de transformação muito grande que a reserva está vivendo e a gestão disso não está sendo bem trabalhada tanto com os seringueiros e com as comunidades nativas que vivem ali, como também pela gestão pública. Estamos vendo ali um paradoxo preocupantes sobre o uso de fogo na unidade e como isso está se espalhando pela floresta mesmo em um ano em que não há uma seca extrema.”

Quem mora em uma reserva extrativista pode desmatar até 10% do lote pelo qual é responsável e metade dessa área pode ser destinada à pecuária. Muitas sem vezes sem poder contar com políticas públicas de apoio ao extrativismo, as comunidades locais podem se render a uma atividade mais lucrativa como a criação de gado, muitas vezes ultrapassando o limite permitido por lei. “Infelizmente estamos vendo que as cadeias econômicas voltadas à valorização dos produtos da floresta têm diminuído os incentivos drasticamente e muitas famílias, quase em sua totalidade, têm sempre uma área de pasto com algumas cabeças de gado, algumas com uma pecuária bem avançada. E toda essa queimada é ou para conversão, quando olhamos o tamanho dos polígonos, parte é para a agricultura de subsistência, ter um plantio de mandioca, arroz, feijão, mas vemos que metade também é para implementação da pecuária dentro da reserva Chico Mendes. A pecuarização está entrando com muita força dentro da unidade”, explica Sonaira.

Em sua tese de doutorado, Sonaira realizou uma pesquisa sobre a dinâmica dos incêndios florestais no Acre, elaborando um mapeamento das ocorrências entre 1983 a 2016. Entre suas conclusões, ela constatou que a vegetação modifica suas características após o processo de regeneração. E esse processo pode ser verificado atualmente na reserva Chico Mendes. O avanço das atividades agropecuárias na unidade de conservação pode acarretar em um círculo vicioso que, no futuro, pode inviabilizar a própria atividade extrativista por conta das modificações causadas pelas queimadas.

“Uma das questões que é importante mencionar na Reserva Chico Mendes é que não temos um estudo para relatar o impacto do fogo que entra pela floresta, se está afetando, por exemplo, a produtividade das castanheiras e das seringas. E ali na região temos uma vegetação com composição florística básica, o bambu, que eles chamam de taboca, e vemos uma mudança muito forte na composição da floresta favorecendo que o bambu esteja se expandindo e ocupando o espaço das árvores que morreram em função do fogo. Existe uma mudança muito importante que ainda não compreendemos na totalidade e essa cadeia de fatores pode impulsionar que os produtores, os seringueiros, fiquem ainda mais desanimados com a questão dos produtos da floresta e vão fazendo essa migração para a pecuária, por exemplo.”

“Temos que ficar preocupados porque o fogo está entrando na floresta e emitindo carbono, mas também pela modificação da floresta depois dos incêndios. Ainda não conseguimos ver uma recuperação total da floresta após as queimadas”, diz. “Se não houver uma política real de valorização dos produtos da floresta para que as populações consigam se manter dentro daquilo que elas aprenderam no passado, de usar a floresta em benefício deles e para gerar renda, vamos ter esse avanço da pecuária nas unidades de conservação sim”, alerta.

As queimadas e a saúde pública

A pesquisadora também chama a atenção para outra questão decorrente das queimadas para a população local e mesmo para regiões mais distantes: os efeitos que isso tem na saúda da população.

“O Ministério Público, desde abril, instalou pelo menos um sensor de qualidade do ar em todos os municípios acreanos. E uma análise que a gente já fez mostra que no mês de agosto não passamos um dia em que não estivéssemos respirando níveis de poluição acima do permitido pela Organização Mundial de Saúde (OMS)”, afirma.

Nesta semana, a filha de Chico Mendes, Ângela Mendes, e entidades ligadas ao meio ambiente entregaram ao Ministério Público do Acre (MP-AC) um documento para que o órgão apure e identifique os responsáveis pelas queimadas. “O problema na Resex não é só a queimada, é problema com gado, retirada ilegal de madeira. Esse período tem trazido prejuízos tanto para a produção como para saúde das pessoas”, disse ela, que também é coordenadora do Comitê Chico Mendes, ao portal G1.

De acordo com dados do Inpe, divulgados pela Secretaria de Meio Ambiente do estado, somente no primeiro dia de setembro, foram 320 focos de queimadas no estado.