Documentário

Filme ‘8 Presidentes, 1 Juramento’, de Carla Camurati: 35 anos de história e um presente inacabado

Juramentos dos presidentes da República desde a redemocratização conduzem novo filme da atriz e cineasta de “Carlota Joaquina” e “Getúlio”

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Documento raro, João Figueiredo, de hobby, cumprimenta Tancredo pela vitória no Colégio Eleitoral de 1985. De lá para cá, muitos brasis são resgatados no filme de Carla Camurati

São Paulo – Assistir a 8 Presidentes 1 Juramento – A História de um Tempo Presente, que estreou nesta quinta-feira (18), não é tarefa fácil. O documentário de Carla Camurati expõe 35 anos de um Brasil cheio de incoerências caras ao seu povo. O filme toma como base os juramentos à Constituição feitos por todos os presidentes da República após a redemocratização, de 1984 a 2019. Começa por José Sarney, empossado em lugar de Tancredo Neves, morto em 21 de abril de 1985. Passa pela promulgação da Constituição Cidadã de 1988. Segue para Fernando Collor, Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva, Dilma Rousseff, Michel Temer. E termina no primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro. Sobre todos, exceto o último, Carla Camurati retrata boas e más notícias, seguindo sempre a narrativa histórica da chamada “grande” imprensa.

O apanhado cronológico resume, em 140 minutos, o que se promete, o que se acredita e as decepções de um povo diante do que não se cumpre eleição após eleição. Daí a força do documentário, com a ressalva de que seu fio condutor é o noticiário que tantas vezes pautou esse mesmo povo, e tantas vezes o levou a escolhas trágicas.

A “grande” imprensa

Tancredo e Sarney, os primeiros da era da redemocratização, foram eleitos de forma indireta depois de o Congresso Nacional ignorar a vontade do povo que nas ruas clamava por Diretas Já. Clamor, aliás, por muito tempo ignorado pela “grande” mídia. O que também não está no filme 8 Presidentes, 1 Juramento. Depois veio Collor, impulsionado e derrubado com a ajuda dessa imprensa. Seu vice, Itamar Franco, assume e faz de Fernando Henrique Cardoso o ministro da Fazenda, pai do Plano Real e seu sucessor. Após a polêmica reeleição, FHC passa a faixa a Lula, que com dois governos muito bem avaliados, transfere o cargo à presidenta Dilma Rousseff.

A partir do impeachment de 2016, com a assunção de Michel Temer e a posterior eleição de Jair Bolsonaro, fica nítida a derrocada do Brasil como Estado Nação. Se a era da redemocratização contava com adversários políticos e projetos distintos de governo, a partir de Temer o que se vê é o desmonte do país em nome de um projeto de poder. É gritante em 8 Presidentes, 1 Juramento a queda de qualidade dos interlocutores da República. E o resultado é o que se vê hoje.

O que ficou de fora

Estão no documentário erros, acertos, acusações, consequências desses governos. Mas não no caso dos governos do PT. 8 presidentes, 1 Juramento fala da operação Lava Jato, e suas prisões, mas deixa de fora os julgamentos que inocentaram os petistas. E também o reconhecimento judicial da Lava Jato como farsa. O documentário ainda retrata o ex-juiz Sergio Moro e o quase ex-procurador Deltan Dallagnol sob o manto do powerpoint – já desnudado há muito tempo por suspeição, incompetência e uso político da Justiça, não incluídos na narrativa histórica do documentário.

Quando chega em Jair Bolsonaro, Carla Camurati imprime à sintomática reunião ministerial de 22 de abril de 2020 – que marca o suposto “rompimento” de Bolsonaro com Moro – o valor histórico que a “grande” imprensa comercial preferiu esquecer. Isso porque a divulgação dessa reunião – autorizada pelo então ministro do STF Celso de Mello – expõe as vísceras de um governo destruidor. Mas expõe também o ideário inescrupuloso do ministro da Economia, Paulo Guedes, que até hoje essa mesma imprensa, que pauta documentalmente o filme, prefere preservar.  

A reportagem da RBA perguntou a Carla Camurati, diretora de obras como Carlota Joaquina e Getúlio, sobre as razões para esse final que deixa de fora tanta coisa reveladora sobre o passado recente e o presente atacado pelo governo do último desses oito presidentes. Leia abaixo a entrevista.

Constituição e democracia

8 presidentes 1 juramento trata a Constituição de 1988 como principal conquista da sociedade com a redemocratização. Essa carta conseguiu ser um documento republicano agregador de princípios, imune às diferenças políticas e à alternância de poder, ou tornou-se um empecilho a ser driblado pelo governante de plantão? 

A Constituição é o documento central da nossa democracia. Como você descreve muito bem é um documento republicano, agregador e imune às diferenças políticas. Não é um documento perfeito como disse Ulysses Guimarães na sua promulgação: “Ela mesma admite reformas”, disse o então deputado.  

Acredito que a visão da Constituição como um empecilho é antidemocrática por princípio. Concordo com Ulysses, a Constituição pode ser aperfeiçoada, dentro das regras estabelecidas por ela mesma, e quem só pensa em como driblar o que nela está escrito está na prática tentando driblar a democracia. Não vai funcionar. 

8 presidentes, 1 juramento
Inflação e outras guerras presentes em 8 Presidentes, 1 Juramento (Primeiro Plano/Divulgação)

Tempo presente

Por que ficou de fora da memória organizada pelo filme a desqualificação dos cabeças do powerpoint – Sergio Moro e Deltan Dallagnol – juiz e procurador da República, pelo STF e pelo CNJ respectivamente, bem como o ingresso deles na política partidária agora, depois de terem sido decisivos para o resultado das eleições de 2018 (como já admitiu o próprio vencedor daquela eleição)?  

O recorte proposto pelo filme sempre foi das Diretas até a posse do atual governo, em 1/1/2019. Além disso, esses fatos são recentes e vivos na memória do público, o que faz a percepção do filme ser diferente sempre que você assiste, pois a história não para de acontecer.  

A famosa reunião ministerial de abril de 2020 foi tratada com relevância pelo filme e deu vazão a falas importantes do presidente. A senhora acredita que essa reunião dá conta do “tempo presente”? As ações desse governo durante um ano e meio entre essa importante reunião e o lançamento do filme acabaram ficando de fora. Por quê? 

Ficaram de fora porque o período proposto pelo filme era até a posse desse governo. A minha intenção com o documentário foi criar uma memória, reconstruir para nós o caminho do período de redemocratização do Brasil. 

Como chegamos a este ponto

Retratar todos os demais governos com suas histórias “completas” (promessas, avanços, problemas) e somente o de Bolsonaro por apenas um ano e pouco, não deixa a dever como registro documental? 

Não penso dessa forma. A população brasileira está vivendo o governo Bolsonaro em toda a sua plenitude. Estamos vivendo essa parte da nossa história política. A missão do filme era traçar um panorama histórico da nossa política desde a redemocratização até o início do atual governo. Não cabe a um documentário histórico analisar a atualidade da política brasileira. Mostramos o que passou para tentar ajudar a sociedade a entender como chegamos a este ponto. 

A narrativa do filme é pautada pela documentação gerada pela cobertura da imprensa tradicional. O filme não trata a imprensa brasileira como um personagem alheio aos acontecimentos? A senhora não vê essa imprensa como um dos sujeitos dessa história? Por exemplo, os próprios condutores da Lava Jato trataram a imprensa desde o início como parte essencial da operação, que foi a de legitimar a estratégia da acusação e antecipar condenações junto à opinião pública. Isso não tem reflexos no “tempo presente”? 

A imprensa que você define como “tradicional” é a que cobriu todos os eventos políticos dos últimos 37 anos. Ela foi personagem da nossa vida política também. O que o filme se propõe é oferecer os fatos políticos, como eles foram vividos e cobertos na época, dando voz aos protagonistas. Reportagens analíticas, editoriais ou mais “opinativas” ficaram fora do filme. Oferecemos os fatos e cabe ao público formar a sua opinião sobre tudo o que vivemos.  

Mais de 1.700 horas de material

Por que razão a história é narrada somente do ponto de vista da mídia tradicional, comercial (a chamada “grande imprensa”)? Por que foram ignorados outros veículos reconhecidos (inclusive como o The Intercept) que têm outras abordagens sobre o que foi narrado no documentário?  

Usamos todo tipo de registro no filme que era possível à época em que os fatos aconteceram… a mídia também foi mudando e expandindo o número de registros ao longo dos anos, acredito que é possível observar essa transformação da mídia dentro do próprio filme. 

Foi difícil procurar e selecionar, mas a nossa pesquisa histórica incluiu todo tipo de veículo, além de cinegrafistas independentes. A matéria prima de imagens para esse documentário é inesgotável, assistimos a mais de 1.700 horas de materiais de arquivo durante a fase de montagem. 

As imagens selecionadas a partir da grande imprensa são as únicas que registraram alguns fatos. No caso específico do The Intercept, dentro do recorte do documentário, nós usamos um bom trecho de sua repercussão na crise no governo Obama, por exemplo. 

O filme não minimiza o impacto das redes sociais e das fake news na construção do “tempo presente”? 

O filme conta a história política do Brasil nos último 35 anos. O impacto das redes sociais e das fake news é mais recente. Mesmo assim está lá, quando falamos da última eleição presidencial. 


Trailer de 8 Presidentes, 1 Juramento – História de um Tempo Presente


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