Direitos humanos

Margarida Genevois: as utopias e a educação como meio de transformação social

Biografia escrita pelo jornalista Camilo Vannuchi detalha a história e histórias da ativista, que aos 98 anos continua sua caminhada

Reprodução/Montagem RBA
Reprodução/Montagem RBA
Em casa, com dom Paulo e vacinada: Margarida Genevois tornou-se símbolo do movimento dos direitos humanos no Brasil

São Paulo – Em 7 de setembro de 1966, quase 200 jovens foram presos quando tentavam participar de congresso da União Estadual dos Estudantes (UEE) de São Paulo. O evento foi organizado na surdina, mas não adiantou: a polícia já os esperava em São Bernardo do Campo, no ABC. Entre os presos, o presidente da UEE, Antônio Funari Filho, e a jovem Malu, que, além de presa, teve de dirigir seu carro, com um agente ao lado, até o Dops. No dia seguinte, seus pais, Lucien e Margarida, foram resgatá-la. Ficaram aliviados quando o delegado disse ter ordens para soltar a jovem estudante de Serviço Social na PUC, 21 anos, filha mais velha do casal. Mas surgiu um imprevisto: Malu se recusava a sair, por solidariedade aos demais colegas. O que aconteceu a seguir é revelador da personalidade de Margarida Bulhões Pedreira Genevois, então com 43 anos.

Embora preocupada com a filha no Dops, por dentro ela vibrou com a postura solidária de sua primogênita, Marie Louise. Já seu marido, o engenheiro francês Lucien Genevois, chorou e sentiu vergonha ao saber da prisão. E ficou atônito com a postura da filha, por não querer sair, e da mulher, de apoio à decisão. Não foram poucas as vezes em que Lucien temeu ser preso ou deportado, mas mesmo assim ele não deixou de apoiar a companheira.

“Foi à farmácia”: mais um preso

Passado o susto, o episódio da prisão rendeu um código interno familiar. Como a filha, em rápido telefonema autorizado no Dops, disse que estava na farmácia, dali em diante falar “Fulano foi à farmácia” significava contar que alguém havia sido preso. Em ocasião com várias prisões simultâneas pela ditadura, uma aflita Margarida exclamou: “Quatrocentos foram à farmácia!”.

Assim, a empatia de Margarida Genevois com os injustiçados ajudou a torná-la um dos símbolos do movimento pelos direitos humanos no Brasil. Várias dessas histórias são contadas no livro Margarida, Coragem e Esperança, do jornalista Camilo Vannuchi, que terá lançamento nesta segunda-feira (19), às 17h, em debate virtual transmitido pela editora Alameda no Facebook e no YouTube. Participam, além do autor e da biografada, o escritor Frei Betto, a cientista política Maria Victoria Benevides, autora do prefácio, o advogado Marco Antônio Rodrigues Barbosa e o consultor André Liberali, que assinam uma apresentação. Na última quinta-feira (15), Margarida foi a convidada do programa Entre Vistas, apresentado por Juca Kfouri na TVT.

O autor informa que os valores devidos a ele pelas vendas serão transferidos para a atividade pastoral do padre Júlio Lancellotti, em São Paulo, com doações à Paróquia São Miguel Arcanjo. Confira aqui como adquirir o livro.

Heróis esquecidos

Autor de biografia da ex-primeira-dama Marisa Letícia Lula da Silva e de livro sobre a vala clandestina de Perus, Camilo conta que inicialmente Margarida Genevois, 98 anos completados em março, resistiu à ideia. Mas foi sendo convencida aos poucos, até que a primeira entrevista foi marcada, justamente para março do ano passado. Com um aviso, ou pedido, ou alerta: o livro não seria apenas sobre uma pessoa, mas deveria honrar a memória daqueles que Margarida chama de “heróis esquecidos”.

E também mostrar que a bandeira dos direitos humanos segue necessária, em tempos de retrocesso, violência exacerbada, machismo, racismo, injustiça, marca de um país atualmente governado por quem alimenta tudo isso. Margarida está inquieta, conta o autor. Praticamente não sai de casa há mais de um ano – exceções, além das consultas médicas, foram a eleição de 2020 e a vacina (CoronaVac). Fala em “fadiga do material”, às vezes desanima com o que vê, mas segue em frente.

A pobreza de perto

O engajamento com a questão social se manifestou, por exemplo, logo depois de seu casamento com Lucien, em maio de 1944, com direito a nota em coluna social – eles haviam se conhecido no ano anterior, em Ouro Preto (MG). De formação clássica, alunas de escolas tradicionais, Margarida saiu do Rio de Janeiro e foi morar em uma fazenda de cana no interior de São Paulo, pertencente à Rhodia. Na época, conta o autor, a cidade mais próxima (Campinas) ficava a 20 quilômetros em estrada de terra. A família ficou ali durante mais de duas décadas.

Ali, Margarida teria suas três filhas (Marie Louise, Rose Marie e Anne Maria) e o filho (Bernard, o caçula). Ao conviver de perto com a pobreza e mazelas brasileiras, como a mortalidade infantil, passou a mobilizar a sociedade e usou conhecimentos adquiridos em um curso para enfermeira de guerra para atender crianças e orientar mães sobre cuidados infantis, naqueles remotos anos 1940 de um país pré-industrial. Foi surgindo a Margarida da Comissão da Justiça e Paz de São Paulo (que presidiu três vezes), a fundadora da Rede Brasileira de Educação em Direitos Humanos e a atual presidenta honorária da Comissão Arns, criada em 2019.

Ao lado de dom Paulo

Durante anos, Margarida foi uma espécie de “braço direito” do cardeal-arcebispo de São Paulo, dom Paulo Evaristo Arns. Ela foi convidada para ingressar na CJP pelo jurista Fabio Konder Comparato. Levou um susto. Não sabia do que se tratava. Mas foi a uma reunião, na casa de dom Paulo, e aderiu ao grupo – integrado também pelo advogado Antonio Funari Filho, aquele estudante preso em 1966 com uma das filhas de Margarida.

margarida genevois
Margarida Genevois observa prova do livro recém-lançado: histórias que se cruzam

Margarida, inclusive, passou a participar de compromissos em nome do próprio cardeal. Foi ela, por exemplo, que recebeu Majer Kucinski, um senhor entristecido pelo desaparecimento de Ana Rosa, sua filha e irmã do futuro jornalista e escritor Bernardo. Ela esteve também, algumas vezes, na região do Araguaia. Em 1987, por exemplo, ajudou a evitar um conflito, que tinha tudo para ser trágico, em manifestação de garimpeiros e lavradores, observados por policiais. Ao voltar, disse não ter sentido medo, mas indignação. Décadas depois, admitiu ao autor da biografia: “Nunca tive tanto medo na vida”.

Educação para conscientizar

Entre muitas histórias, o livro de 330 páginas narra, por exemplo, detalhes do surgimento do Veritas, grupo formado em 1967 para promover “cursos de atualização”. Com temas ousados para a época, como a Guerra do Vietnã, drogas e questão agrária. “Aquela foi, também, uma opção estratégica. Margarida sabia que era a mulher quem realmente educava em casa e quem exercia maior influência sobre a educação dos filhos e das filhas, de modo que os cursos, concebidos como instrumentos de atualização e conscientização, revestiam-se de uma função de longo prazo: a formação de uma nova geração de homens e mulheres mais atenta aos problemas sociais e disposta a superá-los”, escreve Camilo.

As conferências não tinham lugar fixo. No primeiro ano, ocorreram na Faap. E a lista de autores e intelectuais que passaram pelas “aulas” é extensa. Nomes como Clarice Lispector, Antônio Candido, Fernanda Montenegro, Antonio Callado, Roberto Freire, José Ângelo Gaiarsa, Paul Singer, Fernando Henrique Cardoso, Paulo Freire, Fabio Konder Comparato.

Um gole contra a timidez

Outro desafio a vencer sempre foi a timidez. Pelo menos uma vez recorreu a um método pouco ortodoxo, quando, na Praça Charles Miller, diante do estádio do Pacaembu, em São Paulo, teve que falar ao microfone. “Eu tinha um vidrinho na bolsa, pequeno, daqueles de homeopatia, com uísque dentro. Tomei num gole só para ver se ganhava coragem”, revelou.

Coragem é o que ela recomenda para os tempos atuais. O movimento pelos direitos humanos, que muitos veem como utópico, teve conquistas nas últimas décadas. E a democracia precisa ser defendida, como diz Maria Victoria Benevides no prefácio, ao chamar sua amiga Margarida Genevois de “mulher de fé” e citando Leonardo Boff. “Os anseios, as utopias e os sonhos nos desinstalam, nos obrigam a caminhar e a buscar sempre novas formas de democracia e de paz. São como as estrelas. Não podemos alcançá-las, mas são elas que nos iluminam as noites e orientam os navegantes.”


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