Mulher e artista

Nara Leão viveu para não ser musa, cantar o que queria e ter opinião

Biografia mostra cantora com timidez crônica, horror ao fetiche pelos joelhos e ojeriza à fama. Mas de vanguarda, independente e sem medo de se posicionar

Reprodução/Montagem RBA
Reprodução/Montagem RBA
Independente, Nara foi 'se desmusando', disse Chico Buarque. A voz não mudou, mas os discos sempre soaram diferentes (em uma das fotos, aparece dançando com o pai)

São Paulo – Nara Leão não sabia bem o que queria da vida, mas com certeza não era cantar. Virou “musa” involuntária da recém-surgida Bossa Nova, título que a desagradou e nem era justo, porque ela logo desembarcou do movimento, para então se tornar, à revelia, porta-voz da canção de protesto. E assim foi Nara combatendo suas incertezas e tentando fazer valer as suas certezas. A principal, certamente, era de que ninguém lhe apontaria o caminho a seguir. Foi assim na vida e na arte.

Assim, muitos devem ter se surpreendido ao ler o Diário de Notícias em 22 de maio de 1966. O golpe havia sido dado dois anos antes. Com sua voz suave, Nara Leão dizia que “os militares podiam entender de canhão e metralhadora, mas não ‘pescavam’ nada de política”. Para resumir, em pleno regime comandado por militares, ela defendeu o fim de Exército, porque, afinal, o país tinha outras prioridades.

Drummond: “Não prenda Nara Leão”

Previsivelmente, foi aberta a temporada de caça a Nara. A cantora, então com 24 anos, já entrara no radar desde o espetáculo Opinião, apresentado com Zé Kéti e João do Vale (ela depois seria substituída por Maria Bethânia). O nome foi pescado do segundo LP de Nara, lançado em 1964, em que ela aceitava algumas sugestões do jovem e inquieto cineasta baiano Glauber Rocha, seu amigo. E explicava, no encarte, que “a canção popular podia dar às pessoas algo mais que a distração e o deleite”.

Assim como no primeiro, o repertório navegou para bem longe da mansidão da Bossa Nova, por imposição da artista, e se aproximava da crítica social. Nada mal para quem, apenas cinco anos antes, tinha horror à simples ideia de cantar em público e foi literalmente empurrada para um palco, no final de 1959, em pânico e quase chorando. Isso depois de tentar fugir, mas ser impedida por uma porta trancada.

Timidez e valentia

No recém-lançado Ninguém pode com Nara Leão – Uma biografia (Planeta), o jornalista Tom Cardoso explora com desenvoltura esses ainda costumeiros enganos sobre a cantora, que apesar da timidez sempre teve independência e opinião. Como o episódio da entrevista comprova. Seu pai, inclusive, foi chamado para dar explicações e não se intimidou: disse que a filha era maior de idade e tinha direito de expressar seu pensamento.

A ditadura invocou a Lei de Segurança Nacional contra Nara. Os artistas se mobilizaram para defendê-la – um manifesto com 150 assinaturas foi enviado ao presidente Castello Branco. Até o discreto Carlos Drummond de Andrade escreveu um poema-manifesto ao marechal, pedindo para não prender Nara Leão.

Romances e rixa

A mobilização deu resultado. Nara escapou, e continuou falando o que pensava. Mais tarde, já depois de 1968 e do AI-5, com algozes rondando, aconselhada por amigos, deixará o Brasil com o marido, o cineasta Cacá Diegues, com quem se casara no ano anterior. Eles tiveram dois filhos, Isabel e Francisco. O livro conta histórias dos romances anteriores de Nara, como o compositor Ronaldo Bôscoli (ainda adolescente), o poeta Ferreira Gullar e até o “muso” da Jovem Guarda Jerry Adriani.

Jornalista experiente e autor de outras biografias (de Tarso de Castro e Sócrates, por exemplo), Tom Cardoso ilumina a trajetória de Nara mostrando suas inseguranças, que a levaram a longas sessões de terapia. Contesta com dados e fatos a afirmação de que o rompimento com a Bossa Nova e com Bôscoli estavam interligados. Algo que Sérgio Cabral também já refutara na biografia sobre Nara lançada há 20 anos. A foto dos dois livros traz a mesma imagem de Nara, mas o de Tom mostra o rosto cheio da cantora, parecendo olhar diretamente para o leitor.

Liberdade na vida e no repertório

As histórias estão todas lá, com apresentação do pesquisador Tárik de Souza, que define a cantora como “groucho-marxista impenitente”. O inconformismo com os rótulos, a rixa com Elis Regina, a irritação com o fetiche criado em torno de seus joelhos, a valentia diante do arbítrio, ousadia política, liberdade sexual e independência pessoal e artística.

Até que um tumor no cérebro a levasse, em 1989, com apenas 47 anos, Nara viveu, gravou mais de 20 álbuns e cantou o que quis. Fosse o estrondoso sucesso de A Banda, do quase estreante Chico Buarque – com quem formou uma famosa dupla de “desanimadores de auditório” na televisão –, um autêntico samba de morro, um protesto veemente, um libelo feminista, um romance derramado ou apenas uma canção para bailar.


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