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‘Notas sobre o Luto’, de Chimamanda Adichie: essencial em tempos de tanta dor

Autora nigeriana escreveu livro após morte do pai em junho do ano passado. Meses depois perderia também a mãe

Reprodução/Instagram
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Chimamanda sobre James Adichie: "Ele me presenteou com minha ancestralidade por meio de histórias muito bem construídas. Eu não apenas o adorava daquele jeito clássico que as filhas têm de adorar o pai, mas também gostava muito dele. Eu gosto dele..."

São Paulo – “Uma erosão, uma terrível tromba-d’água que deixou nossa família para sempre deformada. As camadas da perda fazem eu me sentir fina como um papel.” A frase da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie nunca fez tanto sentido. Em todo o mundo, quase 4 milhões de famílias vivem essa erosão e o medo de serem engolidas por essa tromba-d’água chamada coronavírus. Diante do avanço da covid-19, da iminência da morte, todos os que temos alguma consciência e amor ao próximo nos sentimos um pouco assim, finos, frágeis “como um papel”.

Os pais e tias de uma das principais autoras feministas negras da atualidade não morreram em função da covid-19, pelo menos não que se saiba. Mas a dor e a solidão são uma só para aqueles que perdem as pessoas que amam em tempos de pandemia. Não há abraços, a conversa nos dias seguintes, o encontro com amigos, o alento das lembranças compartilhadas. Muitos, como Chimamanda Adichie, não podem sequer se despedir, diante de aeroportos fechados, velórios proibidos, distanciamento necessário. A autora estava nos Estados Unidos, quando seu pai se foi na Nigéria.


Estou escrevendo sobre meu pai no passado, e não consigo acreditar que estou escrevendo sobre o meu pai no passado.


É sobre tudo isso diante da insuportável falta que faz seu pai, o professor universitário de estatística James Nwoye Adichie, morto em 10 de junho de 2020, que a autora de Americanah, best seller internacional, fala em Notas Sobre o Luto. O novo livro de Chimamanda Adichie foi lançado em maio deste ano pela Companhia das Letras no Brasil. As tias da nigeriana se foram durante a escrita da obra. A mãe, Grace Ifeoma, em 1º de março passado, dia em que James completaria 89 anos, e quando a obra já estava em circulação.

“Nossa chamada de Zoom é surreal, e nós só conseguimos chorar, chorar e chorar em diferentes partes do mundo, olhando incrédulos um pai adorado que agora deita imóvel numa cama de hospital.”

Chorar com os músculos

Ler Notas Sobre o Luto me fez sentir representada, acompanhada, como nunca antes desde que perdi minha mãe, também em junho do ano passado. Igualmente, minha melhor amiga e companheira de vida não se foi pela covid-19. Tanto que nos cuidamos e ela foi levada, em 50 dias, por um câncer fulminante no pâncreas. O pai de Chimamanda, por uma infecção que provocou falência renal.

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Nas páginas do novo livro, a autora de grandes obras contemporâneas como Hibisco Roxo, Meio Sol Amarelo e Para Educar Crianças Feministas expõe toda a complexidade da dor do luto. E isso inclui, além da tristeza, raiva, saudade, risos, cumplicidade, isolamento, incompreensão, incredulidade. Porque não importa se quem se foi já tinha “idade”. O professor James tinha chegado aos 88 anos e minha mãe tinha quase 80.

“O luto é uma forma cruel de aprendizado. Você aprende como ele pode ser pouco suave, raivoso. Aprende como os pêsames podem soar rasos. Aprende quanto do luto tem a ver com palavras, com a derrota das palavras e com a busca das palavras. Por que sinto tanta dor e tanto desconforto nas laterais do corpo? É de tanto chorar, dizem. Não sabia que a gente chorava com os músculos”, descreve Chimamanda Adichie.


Um amigo me manda uma frase do meu romance: “A dor era a celebração do amor, aqueles que sentiam dor verdadeira tinham sorte de ter amado”. Estranho sentir uma dor tão intensa ao ler minhas próprias palavras.


Rir também faz parte

Chimamanda lembra de como o riso sempre esteve “entranhado” no linguajar da família. “E nós agora rimos ao lembrar do meu pai, mas em algum lugar por trás desse riso existe uma névoa de incredulidade. O riso vai se apagando. O riso se transforma em choro, que se transforma em tristeza, que se transforma em raiva.”

Na montanha-russa de emoções em que vivem os que perdem um ser amado, riso e raiva se tornam um. “Estou despreparada para a raiva descomunal e avassaladora que sinto. Sinto-me inexperiente e imatura diante desse inferno que é a tristeza. Como pode pela manhã ele estar fazendo piada e conversando, e à noite ter ido embora para sempre? Foi muito rápido, rápido demais. Não era para ter acontecido assim, como uma surpresa de mau gosto, durante uma pandemia que obrigou o mundo inteiro a se fechar.”

Um dos irmãos da escritora visitou o pais em Abba, onde viviam na Nigéria, em 8 de junho, e disse que James parecia cansado. “No dia 9, não me alonguei muito em nossa conversa para ele poder descansar. Ele riu baixinho quando fiz minha imitação brincalhona de um parente. ‘Ka chi fo’, disse. Boa-noite. Suas últimas palavras para mim. No dia 10 de junho, ele se foi. Meu irmão Chuks me ligou para avisar, e eu desmoronei.”


Chimamanda

Uma risada que eu nunca mais vou dar. “Nunca mais” veio para ficar. “Nunca mais” parece muito injusto e punitivo. Eu vou passar o resto da vida com as mãos estendidas tentando alcançar coisas que não estão mais ali.


Chimamanda descreve a notícia da morte como um desenraizamento cruel. “Ela me arranca do mundo que conheço desde a infância. E eu resisto… Minha irmã Uche diz que acaba de avisar por mensagem um amigo da família, e eu quase grito: ‘Não! Não conte para ninguém, porque se a gente contar vira verdade’.”

A raiva, o medo, a culpa

Impossível falar no passado de alguém que se ama demais. É estranhamente impossível, quase que como se, ao fazer isso, estivéssemos condescendo à morte. “Pontadas de ressentimento me invadem quando penso em gente com mais de 88 anos, com mais idade que o meu pai, que está viva e bem de saúde. Minha raiva me assusta, meu medo me assusta, e em algum lugar há também vergonha: por que estou sentindo tanta raiva e tanto medo? Tenho medo de ir para a cama e acordar; tenho medo do amanhã e de todos os amanhãs que virão depois”, descreve Chimamanda Adichie.

“Minha cautela em relação aos superlativos é para sempre eliminada: 10 de junho de 2020 foi o pior dia da minha vida. Existe sim o pior dia da vida de uma pessoa, e por favor, querido Universo, eu nunca quero que nada o supere.” Penso isso todos os dias: não suportaria outra dor dessas.


Finalmente entendo por que as pessoas fazem tatuagens daqueles que perderam. A necessidade de expor não só a perda, mas o amor, a continuidade. Eu sou filha do meu pai. É um ato de resistência e uma recusa: é a dor lhe dizendo que acabou, e o seu coração dizendo que não.


A dor do luto também dá lugar a outro sentimento terrível: a culpa. “Queria não ter ficado esses poucos dias sem ligar para eles, porque eu teria visto que ele não estava se sentindo apenas um pouco mal — ou teria pressentido caso não estivesse óbvio — e insistido para ele ir ao hospital muito antes. Queria, queria. A culpa me corrói a alma. Penso em todas as coisas que poderiam ter acontecido e em todas as formas como o mundo poderia ser transformado para impedir o que aconteceu no dia 10 de junho, para fazer isso desacontecer.”

E buscamos alento. “Diz que meu pai rezou, com calma, baixinho, o que pareceram ser trechos do rosário em igbo (sua a língua natal). Ouvir isso me reconforta? Só à medida que talvez tenha reconfortado meu pai.”

A realidade após o fim

Para além do luto, existe a vida, na prática. E toda ela parece não fazer nenhum sentido. Apesar disso, é preciso lidar com “coisas”.

“Nas chamadas de Zoom nós batemos a cabeça, despreparados, desinformados em relação a coisas práticas. É também um naufrágio emocional. Como tivemos a grande sorte de sermos felizes, de estarmos fechados numa unidade familiar segura e intacta, não sabemos o que fazer com essa ruptura. Até agora, o luto pertencia aos outros. Será que o amor traz, nem que seja de forma inconsciente, a arrogância ilusória de achar que nunca vamos ser tocados pela dor?” Uma psicóloga especializada em luto, com quem passei a conversar na tentativa de me entender, diz que a dor e a saudade são proporcionais ao amor. Isso me desespera.

“Tropeçamos; oscilamos entre uma alegria extrema e forçada e a agressividade passiva, ou brigas sobre como os convidados devem ser servidos. A felicidade se torna uma fraqueza, porque deixa a pessoa indefesa diante da dor. Devemos a meus pais o fato de cada um de nós seis se sentir individualmente e intimamente conhecido e amado. Mas ‘o luto é diferente para cada um’ é fácil de ser absorvido pelo intelecto; para o coração é bem mais difícil. Passo a temer as chamadas de Zoom envoltas em sombras. O formato da família mudou para sempre, e nada torna isso mais tocante do que deslizar a tela do celular e não ver mais o quadradinho com a palavra ‘Papai’”, descreve Chimamanda, a filha de James Adichie.


Certa vez, quando estava assistindo a um noticiário americano, ele se virou para mim e perguntou: “O que significa essa palavra, nuke?”. E quando lhe expliquei o significado, ele comentou: “Armas nucleares são uma coisa séria demais para ter apelido”.



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