descaso com a memória

Trabalhadores voltam a denunciar abandono da Cinemateca. ‘Risco de incêndio é real’

Trabalhadores da Cinemateca Brasileira, cineastas e políticos denunciam descaso do governo Bolsonaro com a instituição. Acervo contempla mais de 100 anos de história brasileira em audiovisual

Reprodução/Outras Palavras
Reprodução/Outras Palavras
A Cinemateca preserva o maior acervo audiovisual da América do Sul. Trata-se de uma das mais importantes instituições do tipo no mundo

São Paulo – Os trabalhadores da Cinemateca Brasileira, sediada em São Paulo, divulgaram uma carta denunciando mais uma vez a má gestão do espaço. Eles alertam que o maior acervo audiovisual da América Latina corre riscos cada vez mais reais, após sucessivas investidas do governo do presidente Jair Bolsonaro contra a instituição, que quer o seu desmonte. Os ataques do governo federal contra a classe artística, escolhida como alvo de uma guerra ideológica. A situação também foi alvo de um debate segunda-feira (12), na Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados.

“Não há corpo técnico contratado, o acervo segue desacompanhado e não há qualquer informação sobre suas condições. Por esse motivo, lançamos um alerta acerca dos riscos que correm o acervo, os equipamentos, as bases de dados e a edificação da instituição”, afirmam os trabalhadores. Um dos principais riscos é o de incêndio, já que o material das películas antigas carece de cuidados específicos. Sem eles, existe o risco de combustão espontânea, pela presença de nitrato de celulose.

A mobilização de funcionários e também de artistas foi intensificada e ganhou cobertura na RBA entre os meses de junho e agosto do ano passado. Entretanto, os conflitos datam do fim de 2019.

Função social

Logo no início de seu governo, o governo Bolsonaro rescindiu, unilateralmente, o contrato com a mantenedora da instituição, a Fundação Roquette Pinto. Os argumentos dos bolsonaristas foram recheados de chavões. Acusam a instituição e a classe artística a partir de argumentos difusos e extremistas. Falam sobre “marxismo”, “esquerdismo”, e outras coisas sem sentido diante da realidade.

Entre as funções da Cinemateca Brasileira está a preservação da identidade nacional, através de preservação e divulgação. “Para além da conservação de seu acervo físico, a Cinemateca Brasileira promove a pesquisa e a difusão do audiovisual no Brasil. A partir de transmissões online e do Banco de Conteúdos Culturais (BCC), parte do acervo estava disponível à sociedade. Com o processamento das obras do Depósito Legal e a prospecção e catalogação da produção audiovisual na base Filmografia Brasileira (FB) foi possível manter o mapeamento histórico de uma importante parcela do patrimônio audiovisual brasileiro contemporâneo da nossa atividade audiovisual.” 

Histórico

O descaso e abandono da Cinemateca Brasileira foram alvos de ações do Ministério Público e de representações políticas, com finalidade de preservar o acervo. O ápice dos conflitos aconteceu no dia 7 de agosto passado, quando o governo Bolsonaro enviou a Polícia Federal ao local para tomar as chaves da instituição. A intervenção armada de Bolsonaro colocou mais de 120 anos de história em xeque, já que mesmo os trabalhadores técnicos foram impedidos de entrar no local.

No fim de 2020, o secretário especial de Cultura, Mário Frias, disse que seria publicado um edital para que uma Organização Social (OS) assumisse os trabalhos no local. Entretanto, a situação segue em aberto e sem solução.

“Diante deste quadro preocupante, solicitamos esclarecimentos à Secretaria Nacional do Audiovisual (SAv) sobre a efetivação do plano emergencial, anunciado pelo secretário especial de Cultura, Mário Frias, em dezembro de 2020. Reivindicamos ainda o pronto lançamento do edital prometido desde julho de 2020 para seleção da nova Organização Social responsável pela gestão da Cinemateca Brasileira, assim como a garantia dos recursos necessários para dirimir problemas decorrentes da suspensão dos trabalhos, para o pleno funcionamento da instituição e para a construção de uma solução perene para a instituição”, completa a carta dos trabalhadores.

Preocupação

Na Câmara dos Deputados, a presidente da Associação Brasileira de Preservação Audiovisual, Débora Butruce, reafirmou a preocupação com a segurança dos 240 mil rolos preservados na Cinemateca. “A gente sabe que existem saberes específicos que se perdem a cada mudança tecnológica e esse é um processo que não acaba nunca como o princípio básico da preservação: nada está preservado, tudo está em processo de preservação”, disse.

A deputada federal Jandira Feghali (PCdoB-RJ), por sua vez, criticou o impasse e a lentidão no resgate da Cinemateca. “Já não é a primeira audiência que nós fazemos sobre o tema. Eu pedi para que nós retomemos depois de uma série de possíveis acordos de condução serem feitos. Houve uma promessa do secretário Mario Frias desse edital de contratação de uma nova OS para tomar conta, de recursos de contratação de profissionais e uma solução perene para a Cinemateca. E já estamos em abril.”

Intervenção

Durante a sessão de segunda-feira, o secretário nacional do audiovisual, Bruno Cortês, afirmou que realiza reuniões periódicas sobre a Cinemateca. Ele não escondeu a intenção do governo federal de interferir nas atividades culturais da instituição. “Não adianta, não basta entrar uma OS via chamamento público e ela gerir por tempo indeterminado como se nós estivéssemos apenas observando o que está acontecendo lá dentro. Não é o caso, a gente não vai observar nada, a gente vai atuar junto o tempo todo”, disse.

Memória e identidade

Durante a sessão virtual, o cineasta Cacá Diegues manifestou sua preocupação com a Cinemateca; e com os rumos que o governo Bolsonaro tenta impor à instituição. “Trata-se de uma das cinco cinematecas mais completas do mundo. Preciso dizer que uma cinemateca não sobrevive sem o apoio do Estado. O Estado não precisa ter lucro com isso, nunca haverá lucro. A cinemateca compila o tempo e tempo não dá lucro, dá trabalho. A Cinemateca Brasileira foi ignorada pelas autoridades”, disse.

Outro importante nome do cinema nacional a se manifestar foi Sílvio Tendler. O documentarista afirmou que “lá estão depositados 100 anos da história do cinema e também uma quantidade enorme de filmes a fazer com imagens de arquivos”. “Esses filmes são fundamentais. Nós que trabalhamos com arquivo sabemos o valor deles. Não podemos acessar nada porque não há quem nos atenda”, completou.