"Contra o palácio"

Sagrado, profano, utópico e realista, o Teatro Oficina resiste há seis décadas

Documentário exibido no festival É Tudo Verdade narra a trajetória do grupo e de seu eterno diretor, Zé Celso

Reprodução/Montagem RBA
Reprodução/Montagem RBA
A companhia se junta ao público na "Roda Viva". Com projeto arquitetônico ousado, Oficina teve montagens marcantes, como "O Rei da Vela", idealizada por Zé Celso

São Paulo – Uma tomada aérea, quase ao final do filme, resume fisicamente o espírito do Teatro Oficina: procurando sua liberdade, emparedado entre um prédio e um estacionamento, cercado pelo poder econômico. Um dos poderes que atormentou seus criadores ao longo de seis décadas, ao lado do político e do moral. O grupo se formou na crítica social e de costumes, como mostra o documentário Máquina do Desejo – Os 60 Anos do Teatro Oficina, exibido pela primeira vez no festival É Tudo Verdade.

Um grupo que nasceu a partir da reunião de estudantes da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), no Largo São Francisco, centro paulistano. Era 1958, ano da primeira Copa conquistada, da Bossa Nova chegando, da construção da nova capital federal. A busca por novas linguagens chegou ao teatro, até então mais convencional. Do rompimento com a “mediocridade” da classe média, surgiria um ícone tropicalista.

Um jovem interiorano se tornaria o símbolo dessa inquietude: com 21 anos, o araraquarense José Celso Martinez Corrêa virou sinônimo de Oficina e transgressão. Inclusive estética, a começar da própria formatação do teatro – a reforma projetada pelos arquitetos Lina Bo Bardi e Edson Elito, concluída apenas em 1994, parece juntar o espaço cênico à rua (Jaceguai, no bairro paulistano da Bela Vista, o “Bixiga”), recurso amplamente utilizado nas encenações do grupo.

O Rei da Vela: transgressão

O filme pretende fazer uma “imersão na trajetória artística e política” do teatro, diz Joaquim Castro, um dos diretores, ao lado de Lucas Weglinski. Além disso, busca afirmar, ainda mais nos dias de hoje, “a importância da cultura na nossa vida, como indivíduo e como sociedade”. Ao longo de quase duas horas, imagens se sobrepõem, com narrativa quase sempre em off.

Poucos personagens aparecem falando na tela. Zé Celso, claro, é exceção. Em outra passagem, Caetano Veloso – que havia participado de um show em apoio ao Oficina – conta que ficou “desbundado” quando viu a montagem de O Rei da Vela, em 1967. “Eles (Oficina) me apresentaram Oswald”, disse o cantor. Em 1989, ele aproveitaria o cenário idealizado por Helio Eichbauer para a peça O Rei da Vela na capa do seu LP O Estrangeiro.

“Interpretação agressiva”

O texto foi publicado por Oswald de Andrade em 1937. A montagem dirigida por Zé Celso, 30 anos depois, foi um divisor de águas no teatro brasileiro. Uma “transição violenta”, diz o narrador: “revolução estética”, “interpretação agressiva da realidade social”. Com Renato Borghi e Ítala Nandi no elenco, entre outros, conta a história de um agiota, talvez refletindo a própria agonia de Oswald, que passou por maus bocados financeiros no período em que escrevia. O texto é atualíssimo.

Entre a primeira leitura da peça e a estreia, passaram-se apenas 45 dias. Foi, na verdade, a reinauguração da Oficina, destruído por um incêndio no ano anterior (1966). Antes, uma encenação de Os Pequenos Burgueses, do escritor russo Máximo Górki, com Eugênio Kusnet no elenco, já havia mexido com as estruturas da cultura brasileira. A peça estreou em 1963 e foi retirada de cartaz em 2 de abril de 1964, logo depois do golpe. Voltou após a exclusão da música A Internacional.

Resposta ao golpe

Em seguida, em outubro do mesmo ano, veio a peça Andorra, do suíço Max Frisch, uma “primeira resposta” ao golpe, por meio de metáforas envolvendo o nazismo. O documentário apresenta outras montagens que ajudaram a construir a fama do Oficina, como Galileu Galilei e Na Selva das Cidades (com inédita cena de nudez, em 1969, em plena vigência do AI-5). Fala também do Roda Viva, produção montada em 15 dias, mas não ligada ao grupo. Foi dirigida por Zé Celso, a convite de Chico Buarque, autor da música que dá título à peça. Em 1968, integrantes do Comando de Caça aos Comunistas (CCC) espancaram atores em São Paulo e Porto Alegre. Recentemente, Roda Viva foi reapresentada, com versão contemporânea, desta vez no Teatro Oficina.

A narrativa do filme é fragmentada e tem ritmo caótico, acelerado, talvez inspirado na mente frenética e libertária do diretor teatral. “Você só pode lutar contra a censura se não estiver censurado”, diz ele a certa altura.

Luta pela sobrevivência

Eventual uso de legendas poderia ajudar quem não está familiarizado com a trajetória do grupo e do teatro. Mas a história está lá: a construção do Minhocão bem em frente ao teatro e a luta do Oficina contra o vizinho grupo Silvio Santos, que várias vezes tentou desalojar a trupe. No início de 2020, a Câmara Municipal de São Paulo aprovou projeto que criava o “Parque Bixiga”, na região do Oficina, uma briga de décadas com o dono do Baú da Felicidade. Mas o prefeito em exercício, Eduardo Tuma (PSDB), vetou integralmente o projeto.

Nesse movimento, Zé Celso e companhia foram até a Assembleia Legislativa procurar o então deputado Paulo Maluf, com direito a leitura de trechos de peça – Maluf “contracena” com Elke Maravilha. O prédio foi tombado. Posteriormente, em 1984, o então recém-eleito governador Franco Montoro (então no PMDB) assinou a desapropriação do local, em cena exibida no filme, com direito a cantoria no Palácio dos Bandeirantes.

O palhaço contra o palácio

O filme mostra ainda o bárbaro assassinato do também diretor teatral Luiz Antônio Martinez Corrêa, em 1987 Com 107 facadas, como lembra Zé Celso, irmão de Luiz Antônio. “É a pessoa de quem mais tenho saudade”, afirma no filme, lembrando que ali o crime de homofobia começou a ser explicitado no Brasil.

É também um exercício de sobrevivência. Física e artística. O teatro permaneceu fechado durante anos. “A luta do palhaço contra o palácio”, diz Zé Celso. Vêm montagens mais recentes, como As Bacantes, de Eurípides, já nos anos 1990, Os Sertões, inspirado em Euclides da Cunha, e Roda Viva. “Se você não está criando, você está morto. Quando você deseja, você cria”, afirma o diretor. Ele acrescenta: quem cria, procria.


Leia também


Últimas notícias