Das quebradas cariocas

Em ‘Esculpido a Machado’, rapper Leall se mostra afiado para enfrentar a vida

Direto da Zona Norte do Rio, artista apresenta álbum colocando o racismo e a violência do Rio de Janeiro como pilar central

Marcelo Martins/YouTube
Marcelo Martins/YouTube
Apaixonado por cinema, Leall cria músicas com linhas narrativas capazes de formar cenários e imagens na cabeça de seus ouvintes

São Paulo – A cadeia ou a morte não são as opções de destino para o rapper Leall, como afirma em seu álbum de estreia, Esculpido a Machado, lançado no último dia 1º. Em 12 faixas, o artista da Zona Norte do Rio de Janeiro narra, sem censura, as histórias de sua área, desnuda a violência e a pobreza que o cerca e mostra como dribla a precariedade sem sucumbir.

No álbum, com rimas viscerais e potentes, Leall descreve como a vulnerabilidade da periferia foi a lâmina que o lapidou para enfrentar seus medos e desafiar a vida. Para o artista, o disco traz uma visão panorâmica sobre o racismo, a violência policial e a pobreza, mas também apresenta um afago de esperança para um futuro melhor. “O Rio de Janeiro é a cidade que eu cresci, aqui estão as minhas melhores e piores experiências. Mas acho que o disco cabe na perspectiva de outros lugares. é sobre a violência que está em todo Brasil”, explica.

Na primeira faixa Na Barriga da Miséria, o rapper carioca apresenta estatísticas da miséria que cerca o país. “O meu país tem 5.570 municípios e mais de 6.000 favelas com pelo menos 5 milhões de pessoas”. A citação lembra a introdução de Capítulo 4, Versículo 3, dos Racionais, uma de suas inspirações. “Eu até soltei algumas referências para eles ao longo do disco”, brinca.

Racismo estrutural

Apaixonado por cinema, Leall cria músicas com linhas narrativas capazes de formar cenários e imagens no imaginário de quem as ouve. Ao longo das faixas, o artista apresenta uma ambientação do cotidiano das periferias do Rio, através de uma visão descritiva e profunda, sem fugir do tema central: a exclusão promovida pelo racismo estrutural.

Cada música é uma maneira diferente de apresentar como o racismo afeta o jovem preto. Na faixa Duas Pistolas, Leall denuncia a violência policial e as mortes ocasionadas pelas operações nas favelas. Em Cadeia ou Morte?, o rapper explica que os dois destinos são resultados da falta de oportunidade. As drogas também são interpretadas por ele, em Pedras Amarelas, como outra forma de genocídio do Estado contra o negro.

“A linha narrativa do álbum fala sobre as mais diversas formas de racismo estrutural. A intenção disso foi trazer os diversos traços da exclusão do povo preto. Cada música tem o seu tema central e todos eles giram entorno do racismo e da exclusão que ele promove”, afirma Leall.

Capitães de Areia do Rio

Outro ponto de inspiração para o carioca foi a Música Popular Brasileira. Consumir Jorge Ben Jor e Milton Nascimento o ajudou a se “desintoxicar” do rap, como ele mesmo define. A literatura também influenciou Leall na criação de Esculpido a Machado. A segunda música do álbum é intitulada Pedro Bala, nome de um personagem do livro Capitães de Areia – obra de Jorge Amado que narra a história de um grupo de menores abandonados que vivia de pequenos furtos, e que tinha o personagem Pedro como líder.

Para o artista, revisitar outras obras tornou possível readapta-las para o seu entorno. “Eu consumo bastante MPB e acho que a gente consegue criar o futuro estudando o passado. Por isso, quando fui criar o disco, mergulhei nisso. A referência a Capitães de Areia foi para adaptar a obra à minha realidade, uma versão de Pedro Bala como se ele tivesse nascido no Rio de Janeiro”, acrescentou.

O disco é motivo de comemoração para Leall. Ao misturar o grime com trap e o boombap, ele celebra ter colocado sua arte além do limite. “Eu tentei mostrar a minha capacidade para fazer algo que não precisa ser rotulado, mas com profundidade”, disse. Apesar de colocar o dedo na ferida, ao longo do álbum, ele acredita que foi possível encerrar com uma mensagem positiva e mostrar que a cadeia ou a morte também não são opções para quem o ouve. “Eu encerro com uma espécie de final feliz, dizendo que sou um a menos na estatística. É a mensagem de esperança que precisava passar para quem ouvia.”

O disco

Esculpido a Machado, de Leall, está disponível em todas as plataformas de streaming e conta com dois videoclipes: Cadeia ou Morte? e Encomenda. O trabalho conta com a participação de VND, além de produções musicais assinadas por Luna, Putodiparis, Badibi, DIIGO, Tarcis, Nagalli e VHOOR.