Caixas

Augusto Boal, Itamar Assumpção e Sérgio Ricardo: memórias e histórias preservadas

Desafio das famílias é ampliar o público para divulgar a obra desses três criadores brasileiros

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Itamar, Sérgio Ricardo e Boal: música, pintura, cinema, teatro, criação incessante

São Paulo – Anelis, Cecília e Marina andam às voltas com caixas nos últimos anos. Muitas caixas, que foram levadas, física e metaforicamente, para muitos lugares. Assim ergueram o Mu.Ita, o Museu de Itamar Assumpção, o Instituto Augusto Boal e o portal Sérgio Ricardo Memória Viva. E assim preservam as três obras: de um dos mais originais compositores brasileiros, um dramaturgo brasileiro referência mundial e um multi-criador, que enveredou pelos caminhos da música, do cinema e das artes plásticas.

Nascido João Lutfi em Marília (SP), Sérgio Ricardo morreu em 2020, aos 88 anos. O carioca Boal – o “meu caro amigo” da canção de Chico Buarque e Francis Hime – se foi em 2009, aos 78. E Itamar, paulista de Tietê, partiu em 2003, aos 53. Ontem (3) à noite, Cecília, viúva de Boal, Anelis e Marina, filhas de Itamar e Sérgio, refletiram sobre as dificuldades e alegrias de preservação do patrimônio, contaram histórias, dividiram surpresas e carregaram caixas de afeto. Não à toa, o nome do encontro virtual foi “Acervos Familiares”. Confira aqui a íntegra da live.

Montagem e organização

A cantora Marina Lutfi, com os irmãos Adriana e João, conta que o trabalho se iniciou em 2009, em ambiente universitário, e em 2017 a família conseguiu apoio para montar um site, e a partir daí foram aprimorando um banco de dados. “A gente lançou no ano passado, mas já vem acontecendo há muito tempo”, diz, lembrando que, mesmo doente, o artista pôde acompanhar o processo. “Estava muito feliz de ver que a gente estava conseguindo organizar as coisas dele.”

As caixas de Itamar estão na casa onde ele morou durante grande parte da vida (e onde ainda mora sua mulher, Elizena), no bairro paulistano da Penha, zona leste de São Paulo. Anelis, que também é cantora, conta que o pai era virginiano: “Ele já deixou tudo muito arrumadinho”. Cecília Boal não resiste. “Ai, que bênção!”, exclama. E Marina lembra que Sérgio era geminiano (“Imerso na criação, arte pra todos os cantos”).

À procura de outros públicos

Um problema em comum: o reconhecimento. Marina diz que o pai era “completamente duro, completamente fora da mídia, de qualquer janela”, apesar de uma produção artística incessante. “Ele produzia, produzia, produzia, mas as pessoas não viam, não tinham acesso”, comenta, apontando um público ainda restrito com acesso à obra de Sérgio Ricardo. “Nosso grande esforço é fazer as pessoas conhecerem.” A filha lembra que ele começou trabalhando com gravadoras, mas “foi muito silenciado” durante a ditadura e trilhou caminho independente.

No caso de Itamar, comenta Anelis, o desafio é levar a obra a outros públicos, talvez mais próximos de suas raízes. Para ela, o artista sempre foi mais visto e ouvido em meios intelectuais. “Quando as pessoas pretas descobrirem que existiu um Itamar elas vão enlouquecer. Eu preciso mostrar esse cara pra elas. Porque o público do Itamar é branco.” O museu virtual incluiu tradução em Yorubá – uma ponte com a ancestralidade, define.

Construção de espaços

“Desde que ele faleceu, eu, minha irmã (Serena) e minha mãe começamos a organizar a obra dele. Homem negro, sem estudo acadêmico e que fez questão de ter uma carreira independente. Hoje é normal, mas há 40 anos isso é uma coisa que não existia.” E conta que o inventário demorou a ser concluído, porque Itamar não tinha patrimônio material: “apenas” a música. Esse esforço sofreu um baque em 2016, com a morte de Serena – há uma “sala”, um espaço dedicado a ela no museu.

Já Cecília lembra que Boal, doente, começou a ficar aflito vendo fitas VHS mofando e queria encontrar uma solução. “A gente ficou exilado muito tempo, 16 anos fora do Brasil, passamos por vários lugares. Como é que o Boal carregava essas tralhas de um lado pra outro? Pra mim, é um mistério”, diz. O material andou pela UniRio, pela UFRJ, Fundação Darcy Ribeiro, Casa de Rui Barbosa… Agora, está no Museu Lasar Segall, em São Paulo.

Museus da memória

Ela revela que recusou uma proposta de compra do acervo feito pela Universidade de Nova York. “Não me arrependo. Sou psicanalista. Para mim, questão de identidade é fundamental. Estou batalhando para reafirmar nossa identidade, nosso valor como latino-americanos. Faz parte desse valor não abaixar a cabeça”, afirma Cecília, citando, com uma “adaptação”, trecho da letra da canção Língua, de Caetano Veloso: “Se você tem uma ideia incrível, você pode filosofar em português do Brasil”.

As três mulheres concordam que cuidar da obra ajuda a superar a dor da perda. Pequenos museus, de nossas memórias, define Cecília. Anelis imagina o pai hoje em dia, tendo acesso ao WhatsApp. “Meu telefone já teria estourado de tantos poemas que ele teria me mandado.”


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