Palavra e canção

Patricia Robaina, entre versos e inquietudes da América Latina

Cantora e pesquisadora uruguaia musicou versos da primeira poeta negra a publicar um livro no continente

Sol Larraburu
Sol Larraburu
Além de composições próprias, Patricia Robaina tem se dedicado a pesquisar autores às vezes 'invisibilizados' e linguagens de seu país

São Paulo – A compositora e pesquisadora chilena Violeta Parra foi aos céus em 1967 e portanto não tem como saber. Mas já neste século, em uma pequena cidade no interior do país, uma jovem uruguaia viu nascer sua inquietude, sua curiosidade por descobertas, uma parceira de dificuldades e inspiração. “Desde pequena, e já na adolescência, ando com meu gravador na mão, resgatando histórias que parecem não importar a ninguém”, conta a cantora e compositora Patricia Robaina, 37 anos. Por isso, chama Violeta de “minha primeira professora”. “Sinto-me identificada com sua solidão, com a falta de apoio que teve, com as tristezas que atravessaram sua vida.”

Nascida em Melo, cidade fronteiriça de 55 mil habitantes – fica a 60 a quilômetros da divisa do Brasil – também tem sua mãe, Laura Martinez Coronel, reconhecida poeta e professora, que partiu recentemente, em junho, como inspiração e influência. Ela a ensinou a absorver poesia como o pão de cada dia. A casa da família sempre esteve tomada por palavras e sons, inclusive de autores brasileiros.

A atividade de pesquisadora conduziu Patricia à obra de Virginia Brindis de Salas (1908-1958), poeta negra uruguaia, a primeira a publicar um livro do gênero no continente. Com obra de temática social e pouco conhecida inclusive em seu próprio país. Ao lançar recentemente o disco Marimorena, Patricia ajudou a dar visibilidade à poesia de Virginia. Depois disso, inquieta, ela também musicou textos de outra poeta, Teresita Cazarré, lançando um premiado disco de canções infantis. Além disso, atua como educadora musical.

Confira a entrevista

Em suas pesquisas, você “descobriu” Virginia Brindis de Salas. Como se explica que exista tão pouco registro dessa obra? Por que esse esquecimento?

Em primeiro lugar, Virginia não publicou seus livros no Uruguai, mas na Argentina. Não sei o motivo. Talvez tenha a ver com fato de que sua obra não havia sido difundida no Uruguai daquela época. Outra causa – segundo me contou sua filha, Unguet, em uma entrevista que fiz – teve a ver com a própria discriminação de seus pares. A escritora tinha muitos companheiros brancos, e ao que parece isso foi motivo de discriminação constante.

Em terceiro lugar, logo depois de sua morte, outro escritor afirmou ser o autor verdadeiro de sua obra. Algo que, anos mais tarde, foi desmentido pelo pesquisador Marvin Lewis, ao demonstrar que que o autor em questão havia realizado o prefácio do primeiro livro de Virginia (Pregón de Marimorena), acabando com qualquer acusação imprópria.

A última razão, não tenho como comprovar, mas creio fervorosamente que Virginia pode ter sido filha de Paganini Negro, conhecido violinista cubano. Algo que nunca pôde ser comprovado, mas sobram coincidências e evidências para chegar a essa conclusão: desde as denúncias que estão em suas próprias letras, até uma carta autobiográfica que insiste na veracidade de seus laços de sangue. Admirada por poetas como Juana de Ibarbourou (de quem foi amiga íntima), Gabriela Mistral e Nicolás Guillén (a quem recebeu em sua casa), é um mistério que sua obra tenha sido silenciada durante todos estes anos.  

Clarice Lispector, Fernando Pessoa, Ferreira Gullar, Carlos Drummond de Andrade foram alguns visitantes assíduos nas estantes da minha casa

Você disse certa vez que a poesia era “o pão de cada dia” em sua casa. A leitura incluía também autores brasileiros?

Sim, minha mãe foi uma grande poeta. Como ela, aprendi não apenas a ler poesia, como também a escutar. Clarice Lispector, Fernando Pessoa, Ferreira Gullar, Carlos Drummond de Andrade foram alguns visitantes assíduos nas estantes da minha casa. Também a poesia dos grandes autores da MPB.

E quanto à música? Quais autores, uruguaios ou não, influenciaram seu trabalho? Você escutava, principalmente, cantoras brasileiras…? 

Sempre digo que nos caminhos da minha infância há uma mistura de Jaime Roos (compositor uruguaio) com Chico Buarque. Uma dança coral com Adriana Calcanhotto, Clara Nunes e Diane Denoir (cantora uruguaia). Uma esquina dourada para Spinetta, Charly García (cantores argentinos) e o grande mestre Alfredo Zitarrosa (um dos principais nomes da música na América Latina).

O fato de você ter nascido em uma cidade próxima à fronteira deve ter contribuído, não? Soube que se fala muito português em Melo… Há muita influência afrodescendente também?

Isso mesmo. Um idioma nativo e pouco mencionado aqui é o idioma corrupio. Muitas palavras afrodescendentes ainda estão em nosso linguajar cotidiano. Há muito pouco tempo, fiz uma canção com essas palavras: se chama Cuchilla de Cambota.

Outro dia escutava um comentário de Caetano Veloso, sobre o que aconteceu quando escutou uma canção de Peninha. Ele dizia algo como “Eu desisti, porém não resisti”. E acredito que é assim que andamos

Com exceção de um Galeano ou Benedetti, talvez, no Brasil pouco se conhece da literatura uruguaia, ou mesmo da sul-americana em geral. Concorda?

Estou de acordo.

Por que isso acontece, na sua opinião? Interesses comerciais impedem que haja maior intercâmbio?

Mas penso também que a falta de interesse das pessoas é muito grande. Isso porque um vivemos um sistema que vem trabalhando meticulosamente no esvaziamento da cultura, e esse é um dos resultados. Estamos tão próximos, porém vivemos em grandes e pequenas ilhas. As palavras são um deserto que apenas os escritores tocam com sua língua.

Você também dá aulas. Qual a importância da educação musical para crianças e jovens, para uma formação de cidadania?

O encontro com as emoções, que é uma grande fiesta rodante, que muitos estão empenhados em dissolver. A importância de ser tocados pela alegria ou pela tristeza para além das obrigações que esse sistema exige. Meninas e meninos estão sendo condenados ao medo, a crer que o contato com o outro pode provar a morte. É algo tão terrível que apenas a arte poderá fazer sua magia para curar tanto absurdo infinito. A música é um lugar para que meninas e menos possam expressar-se livremente como pessoas, para além de tristes prognósticos. Há que se crer nas auroras.

Qual o poder da música do ponto de vista social e político, particularmente neste momento de novo avanço do conservadorismo em vários países do continente?

Outro dia escutava um comentário de Caetano Veloso, sobre o que aconteceu quando escutou uma canção de Peninha. Ele dizia algo como “Eu desisti, porém não resisti”. E acredito que é assim que andamos, resistindo, reinventando-nos, esperando e lutando mais do que nunca.

Durante a pandemia, minha mãe amada se foi para habitar outros planetas com sua poesia. Ela sempre me disse que partiria no dia em que muita gente morresse, mas jamais pensei que seria tão cedo

A arte como ferramenta política para dar voz aos que não a têm. Como diz Juan Gelman (poeta e tradutor argentino, vencedor do Prêmio Cervantes em 2007): “Con tus versos no harás la revolución, dice.” (…) “Se sienta a la mesa y escribe…”

No Brasil, dizemos que a pandemia deixou mais evidente ainda a desigualdade no país, a falta de acesso a direitos básicos. E no Uruguai?

Aqui retrocedemos para a falta de tudo. Vieram pela educação e pela cultura. A pandemia deixou em evidência um novo governo político ao qual não interessa, minimamente, os problemas reais das pessoas.

A propósito, você lançou um disco em plena pandemia…. Com uma forte carga pessoal.

Durante a pandemia, minha mãe amada se foi para habitar outros planetas com sua poesia. Ela sempre me disse que partiria no dia em que muita gente morresse, mas jamais pensei que seria tão cedo. A sua última palavra foi que, entre nós duas, sempre haveria uma mensagem “críptica” (“Un mensaje ‘críptico'”, no espanhol). E assim chamei o disco que eu mesma produzi, com várias canções de minha autoria e uma musicalização de um poema de Federico García Lorca. 


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