Veredas

Guimarães Rosa virtual, mas realista: evento vai discutir ‘o bem e o mal’ na obra do escritor

A 32ª Semana Roseana, que costuma atrair milhares de pessoas a Cordisburgo (MG), desta vez será realizada pelas redes sociais

Reprodução/Montagem RBA
Reprodução/Montagem RBA
A capela, o museu e alguns detalhes: autor de "Grande Sertão: Veredas" e "Sagarana", entre outras obras, mantém seu fascínio

São Paulo – Com população estimada pelo IBGE em 8.890 habitantes no ano passado, a pequena Cordisburgo não escapou da pandemia de coronavírus. Até o meio da semana que passou, a cidade na região central de Minas Gerais havia confirmado 44 casos, com 42 pacientes curados e um internado. Uma pessoa morreu. A crise atingiu o Museu Casa Guimarães Rosa, fechado desde 18 de março, e ameaçou seriamente a realização da Semana Roseana, tradicional evento dedicado à obra do escritor. Ameaçou, mas não impediu: a Semana será virtual, começa nesta segunda-feira (27) e vai até o próximo sábado (1º).

E o tema do encontro deste ano, que chega à 32ª edição, parece remeter aos dias atuais. As narrações e os debates vão abordar “o bem e o mal na obra de Guimarães Rosa”.

O coordenador do museu, Ronaldo Alves de Oliveira, cita de imediato a dúvida que assalta Riobaldo, protagonista do Grande Sertão: Veredas, obra-prima publicada em maio de 1956, e já rendeu teses. O diabo existe ou não?

Os leitores lembrarão que, ao final das quase 600 páginas, ele concluirá: “Existe é homem humano. Travessia”. Mas o mal espreita e atormenta nos redemunhos.

Veredas e Miguilins

Na noite de quarta-feira (29), será feita a narração da estória O Pacto das Veredas Mortas, extraída do Grande Sertão. Será narrada por Fábio Barbosa, um ex-Miguilim que hoje coordena a turma de contadores no museu e atua no grupo Caminhos do Sertão, um dos parceiros na empreitada roseana.

Miguilins são os meninos e meninas narradores de estórias, ideia surgida há quase um quarto de século, vinda de Calina Guimarães, prima do escritor (leia mais ao final deste texto). Já afastada, Calina morreu em 2018, aos 93 anos. Os jovens são treinados há tempos por Dôra Guimarães e Elisa Almeida. Foi de Dôra, por sinal, a sugestão do tema deste ano.

“Vem a calhar com o que a gente está vivendo, com o momento que o mundo está vivendo”, acredita Ronaldo. Ele aponta a crise politica, social e ambiental que o país vive. “Olha a maldade que estão fazendo na Amazônia”, acrescenta.

Do real para o virtual

O coordenador do museu integra a mesa de abertura, às 20h desta segunda. Além dele, o secretário estadual de Cultura e turismo, Leônidas Oliveira, o presidente da Academia Cordisburguense de Letras, Raimundo Alves, a reitora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Sandra Regina Goulart Almeida, e a professora Elni Elisa Willms, da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT). A programação completa do evento está nas redes sociais do museu.

Por sinal, foi necessário incrementar as ações na internet. Até março, o museu tinha apenas uma página no Facebook. Só então surgiu o Instagram – e, mais adiante, uma página no YouTube. “A partir daí, as nossas redes sociais passaram a ter uma atenção maior”, lembra Ronaldo, que destaca a correria para viabilizar o evento no novo formato. “Um grande desafio foi justamente a questão das plataformas.” Nesse sentido, ele ressalta a parceria com o Espaco do Conhecimento da UFMG, inclusive para a realização de podcasts.

Um dos eventos mais aguardados da Semana Roseana é a caminhada eco-literária, durante a qual há cantoria e contação de estórias. Desta vez, na impossibilidade de andar pelas terras de Cordisburgo e arredores, foi feita uma filmagem em área externa, com narrações, sob o tema “O sagrado e o profano nas veredas de Riobaldo”. A transmissão, no sábado, será pelo YouTube.

O sertão e seus caminhos

Personagem querido na cidade e pelos visitantes, José Osvaldo dos Santos, o Brasinha, vai participar com um podcast na quarta-feira, via Spotify. Pesquisador da obra de Guimarães Rosa, ele falará sobre “Sertão bom, sertão mau”. Brasinha, por sinal, mudou recentemente o endereço de sua loja (uma rua para cima), verdadeiro ponto de encontro em Cordisburgo.

“Acho que vai ser uma grande oportunidade para quem nunca veio presencialmente”, diz Ronaldo. “Acredito que a gente vai conquistar um novo público.” Interesse existe: com apenas dois dias de inscrição, já haviam sido recebidas mais de 400 inscrições para a live de abertura, de um total possível de 500. Já era bem mais que a capacidade do auditório (180 pessoas). No final, fecharam em 550 inscritos.

É claro que nada substitui a experiência de participar ao vivo. De um debate, uma leitura de texto, uma audição de narração, a caminhada. “Porque a Semana, na verdade, é um encontro de pessoas”, lembra Ronaldo. E o museu, criado em 1974 e que funciona no mesmo local onde o menino Joãozito viveu até os 9 anos – era a venda de seu pai –, é parte importante desse encontro. Apenas em 2019, recebeu 28 mil visitantes.

Quase 600 mil visitantes

O recorde é do ano anterior, quando passaram pelo local 34.407 pessoas, estudantes em sua maioria. A Semana Roseana costuma responder por 3 mil a 5 mil dessas visitas – ou seja, o equivalente a pelo menos um terço da população. O total, desde a criação do museu, já se aproxima de 600 mil (exatos 586.950 até 2019).

Tem suas peculiaridades. Há grande número de belo-horizontinos. Em junho e julho, são muitos paulistas. Em janeiro, brasilienses a caminho do litoral, que passam na ida ou na volta. Desde iniciados, como o grupo de devotos que sai todos os anos de São Paulo – e se dedica a leituras periódicas no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), na USP ––, a jovens que tentam desbravar e percorrer os sertões literários de Rosa.

Leia mais

Onde vive o sertão

Os meninos contam, e a obra de Guimarães Rosa se espalha

Mia Couto: as dores de duas terras e o alento de Rosa