Entrevista

Yuri Marçal: ‘Brasil retrocedeu 120 anos com Bolsonaro’

Yuri Marçal faz sucesso ao investir no humor afrocentrado, uma vertente da comédia com pouco espaço no Brasil

Divulgação/Thiago Jesus
Divulgação/Thiago Jesus
Yuri Marçal acredita que os protestos nos EUA são uma fagulha para o mundo, porém vê com receio a reprodução desses atos no Brasil: 'Polícia mata com orgulho'

São Paulo – O Brasil voltou 120 anos desde a eleição do presidente Jair Bolsonaro. A política do novo governo coloca em risco a sobrevivência de artistas negros, com as decisões anticultura, e desconstrói uma luta histórica ao manter no comando da Fundação dos Palmares o atual presidente Sérgio Camargo. A avaliação é do ator e humorista Yuri Marçal, um dos expoentes da comédia preta.

O retrocesso que vive o país já era esperado pelo artista. Desde a eleição, Bolsonaro já proferia discursos racistas. Além disso, a cultura sempre foi alvo de seus ataques. Em 2019, o governo cortou 43% do orçamento da Agência Nacional do Cinema (Ancine) e vetou o apoio a filmes com temáticas LGBT e pessoas negras.

Yuri afirma que os artistas negros são referência em todos os tipos de arte, entretanto essas ações do governo buscam frear todo o avanço que houve nos últimos anos. “Em qualquer ambiente artístico, quem faz, domina a parada, são os pretos, e minar isso é tirar a sobrevivência dessa galera”, afirma.

A presença de Sérgio Camargo na presidência da Fundação Palmares é outro ponto criticado pelo ator. Responsável por uma instituição que preserva valores culturais negros, Camargo xingou Zumbi dos Palmares, criticou o Dia da Consciência Negra e usou o termo “macumbeira” para se referir a uma mãe de santo.

“Quando a coisa é muito absurda, eu acho graça, então quando ele começou a falar sobre a questão do Dia da Consciência Negra, achei que era para irritar a gente. Agora, eu coloco a mão na cabeça e penso ‘meu Deus’. Ele criou um selo para inocentar as pessoas do racismo. Isso é um retrocesso de 120 anos tranquilo”, lamenta Yuri Marçal.

Black Lives Matter

Há 10 dias, o movimento negro dos Estados Unidos está nas ruas para protestar contra o racismo e a morte de George Floyd, assassinado por um policial branco. O humorista acredita que a ação é uma fagulha boa para o mundo, porém vê com receio a reprodução desses atos, no Brasil.

“O Brasil se espelha muito na cultura norte-americana, mas a gente não pode sair quebrando tudo aqui, porque a gente sabe que a polícia mata e com orgulho“, afirmou ele, que se diz surpreso com os protestos. “Nos meus 27 anos de vida, não tinha presenciado a galera com o orgulho de ir à rua por fogo nos racistas. Aliás, se não tivesse a pandemia, estaria ainda maior”, acrescenta.

O artista também lamenta a necessidade de ir à rua cobrar a manutenção da democracia em meio a pandemia do novo coronavírus. “É muito absurdo a gente ter que ir à rua, durante um recorde de mortes pela doença. Porém, estamos indo pra rua porque estão matando a gente dentro de casa. É uma dicotomia muito grande, mas as ações policiais no Rio de Janeiro não pararam e precisamos gritar sobre isso.”

Um dos casos emblemáticos foi o assassinato do garoto João Pedro Mattos Pinto, de 14 anos. Ele foi morto em casa, durante uma operação das Polícias Federal e Civil no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, no Rio, em março. De acordo com relatos, policiais jogaram granadas e atiraram contra a casa.

Comédia e arte

Yuri Marçal faz sucesso por investir no humor afrocentrado, uma vertente da comédia com pouco espaço no Brasil. Seu show faz referências às mulheres negras, religiões de matriz africana e aos estereótipos sobre brancos. Nomes estadunidenses como David Chappelle, Chris Rock e Michael Che foram suas inspirações na comédia. Ao ser questionado sobre a possibilidade do humor praticado nos Estados Unidos, incisivo sobre o racismo, ter espaço no Brasil, Yuri afirma que há uma tentativa de “invisibilizar” esse tipo de arte.

“A cena da comédia ignora muito a nossa existência e o meio artístico, num modo mais geral, ignora mais ainda. Enquanto nos Estados Unidos isso é feito como algo que transcende a comédia, aqui é tratado como uma “subcomédia”, como se fosse apenas uma galera preta. Porém, e sou prova disso, está começando um movimento bem legal”, diz.

A comédia vive um dilema entre o limite do humor e a liberdade de expressão. Para ele, nem sempre a piada é uma opinião, mas o comediante não pode justificar qualquer coisa como piada. “O limite do humor é o silêncio, ou seja, se não riram, você tá errado. A liberdade de expressão é necessária, mas tem coisa que você não pode falar. Se você quer propagar o discurso de ódio, ninguém quer ouvir isso”, conclui.