Ensaio sobre a Cegueira

Dez anos sem (ou com) Saramago, entre a desumanidade e a esperança

É uma década “de saudade, não de ausência”, como diz a fundação presidida por Pilar del Río. “Nestes 10 anos, José Saramago não faltou a nenhum encontro”

Fundação José Saramago
Fundação José Saramago
Obra do escritor português traz reflexões sobre a vida e a humanidade. Muitas vezes, sobre a falta desses elementos

São Paulo – Nesta quinta-feira (18), completam-se 10 anos da morte de José Saramago. O escritor português tinha 87 anos e vivia no arquipélago espanhol de Lanzarote com Pilar del Río. Mas, segundo ela, efetivamente, ele nunca “deixou de estar” para quem lê suas obras ou como referência social. “José Saramago não faltou a nenhum encontro”, acrescenta a também escritora e tradutora, que preside a fundação dedicada ao escritor, sediada em uma rua histórica de Lisboa. Assim, é “uma década de saudade, não de ausência”, como assinala a entidade.

Nestes tempos de pandemia, o autor de obras como O Evangelho segundo Jesus Cristo, Todos os Nomes, História do Cerco de Lisboa (que no mês passado ganhou dossiê na revista do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo) e A Caverna, entre outras, tem sido lembrado pelo livro Ensaio sobre a Cegueira, de 1995. Pilar considera pertinente a comparação. A obra foi transposta para o cinema em 2008, em longa dirigido pelo brasileiro Fernando Meirelles.

A Fundação José Saramago segue desenvolvendo atividades relacionadas ao escritor, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura em 1998. Além da reedição de livros, no ano passado, por exemplo, foi lançado, inclusive no Brasil, o Último Caderno de Lanzarote, diário de Saramago.

Leitura e debate

Nesta quinta, a FJS promove leitura de Alabardas, alabardas, Espingardas, espingardas – livro a que Saramago se dedicava quando morreu –, com os atores André Levy, Joana Manuel e Tiago Rodrigues. A sessão será transmitida por streaming, via Maple Live. Bilhetes virtuais, ao custo de € 3, serão destinados a um fundo de apoio aos trabalhadores na cultura.

Além disso, no mesmo dia a própria Pilar participará de debate no evento intitulado Sempre um Papo. Também estarão presentes Luiz Schwarcz, editor da Companhia das Letras, e Carlos Reis, professor da Universidade de Coimbra. O evento, a ser transmitido no YouTube e pelo Facebook, está marcado para as 19h30 (no horário de Brasília).

Sobre o mundo que virá após a pandemia, Pilar diz temer “que nos deixaremos guiar pelos que nos querem submissos, escravos, sem voz e dóceis”, em um sistema sem respeito ao ser humano. Mas também observa que no Ensaio sobre a Cegueira o escritor descreveu comportamentos que permitiram ter esperança. “Ou seja, que sejamos capazes de ver o que temos por diante.”

Que lembranças Saramago lhe traz, desde que ele “deixou de estar” (ou desde que se “encantou”, como diria Guimarães Rosa)?

Nestes 10 anos José Saramago não deixou de estar para os leitores nem como uma referência social, é uma voz humanista que se ouve quando estoura um conflito, quando pensamos em ambientes com mais densidade humana ou quando querer desfrutar da beleza de um texto. O escritor José Saramago está nas bibliotecas e nos corações. Para a maioria das pessoas, ele continua morando em Lanzarote e, a cada tanto, vem a Lisboa ou viaja para outros países, dá uma entrevista ou publica um livro. Nestes 10 anos, José Saramago não faltou a nenhum encontro. As outras ausências são do âmbito privado… Quando o assunto é a perda de pessoas próximas todos nós, infelizmente, temos experiência, não vale a pena falar disso.

Nesse período de pandemia, muitos se lembraram do Ensaio sobre a Cegueira. Considera a comparação pertinente?

Considero absolutamente pertinente: José Saramago descreveu uma epidemia que afetou uma sociedade e deixou a todos perplexos. “Todos são vítimas”, escreveu. Numa epidemia, em princípio, não há culpados: nem cidadãos, nem profissionais da saúde, nem cientistas ou governos. Nessas situações tremendas, “pessoas que vendo não veem”, cegos da razão, repetem comportamentos desumanos, que não abonam a humanidade que somos. Por sorte, José Saramago, na descrição do horror, deixa algumas manifestações de solidariedade e até de amor. Sem esses comportamentos, tão iluminadores, o livro seria o pior reflexo da humanidade. Esses comportamentos permitem a esperança. Ou seja, que sejamos capazes de ver o que temos por diante.

No último dos Cadernos de Lanzarote, Saramago responde a uma pergunta sobre o fim do milênio e diz que o que está a acabar, de fato, é uma civilização, a do tipo humano que começou a se definir na época do Iluminismo. Mas não sabia o que viria depois. A sra. acredita que, passada a atual crise, haverá alguma mudança significativa no nosso modelo de sociedade?

Não sei, ouço e leio vozes que pedem atenção e prudência, que dizem que vivemos em estado de loucura e que deveríamos pisar no freio para conhecermos mais e melhor quem somos. E a cultura e a educação é que nos ajudariam a entendermos melhor as coisas e criarmos coragem para enfrentar esse caos econômico e sanitário. Mas eu temo que nos deixaremos guiar pelos que nos querem submissos, escravos, sem voz e dóceis.

Poderíamos mudar? Poderíamos. Queremos mudar? A ética da responsabilidade é muito exigente: estamos dispostos a estar com os outros e trabalhar com eles? Talvez prefiramos buscar a salvação individualmente. E se é assim, não teremos aprendido nada, continuaremos sendo vítimas de um sistema que não considera nem respeita o ser humano porque seus objetivos são outros.