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Livros, música, cinema: o Brasil profundo contra quem vê a cultura como o ‘inimigo número 1’

Escritor, ator, compositor e ex-ministro dividem reflexões sobre o ataque ao conhecimento e as ações para preservar a criação artística

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Chico, Stepan, Jandira, Marcelo e Juca: caminhos para impedir projeto de destruição

São Paulo – A cultura popular, o chamado Brasil profundo, deve ser a resposta a um governo que elegeu o conhecimento como “inimigo número 1”, afirmam representantes da arte em debate promovido na última quarta-feira (3) por oito fundações partidárias, reunidas no Observatório da Democracia. Para o escritor Marcelo Rubens Paiva, por exemplo, não se pode imaginar que a situação atual se deva a uma crise econômica e sanitária. “É, sim, um projeto de Estado (de eliminação da cultura). Ou reagimos já ou teremos trevas por muitas décadas”, afirma o autor de Feliz Ano Velho.

O ex-ministro da Cultura Juca Ferreira aponta a inteligência como uma necessidade ainda maior neste momento, quando o poder foi tomado pela “boçalidade, a burrice, a ignorância”. Ele defende um ambiente de reflexão e de “comunicação contra-hegemônica, no sentido de recuperar a vida democrática no país”.

Para o ator Stepan Nercessian, a situação brasileira já era dramática, em todos os campos, mesmo antes da pandemia e do bolsonarismo. “A cultura apenas está refletindo um processo que vem de longa data, agravada pelo fato de que agora nós não temos só a falta de apoio, a gente tem um governo que está atirando contra a gente, que nos nomeou como inimigo número um na sociedade.” Mas o ex-deputado e ex-presidente da Funarte acrescenta que quem consome cultura não acredita no discurso do governo: “O nosso público não caiu nessa lorota”.

Capitalismo é pandemia

Para o cantor e compositor Chico César, o que se tenta, no fundo, é emudecer os povos ancestrais, negros, índios. “Precisamos ouvir o homem original do Brasil, escutar as vozes indígenas”, afirma, considerando o capitalismo como uma espécie de “pandemia” para o mundo, em relação aos modos de produzir, distribuir e consumir riquezas.

“Muitas vezes a cultura é confundida com a arte, e a arte é confundida com o entretenimento. Houve um momento no Brasil, recente, em que Gilberto Gil e Juca Ferreira, juntos, tentaram ampliar esse espectro. Mas depois muitos de nós fomos entendendo essa necessidade de pensar a cultura com os mestres da cultura popular, com os ribeirinhos… Ouso dizer que isso não era consensual dentro dos governos, mesmo petistas. Governo nenhum é consenso, governos são conflitos de interesses.” Chico lembrou de seu tempo à frente da Fundação Cultural de João Pessoa e depois como secretário da Cultura na Paraíba. “Foi um momento rico e conflituoso.”

Por um lado, acrescenta Chico César, é preciso inspirar-se “nas bases que nos dão origem e que no fundo são elas que esse sistema quer calar”. Sem deixar de cuidar dos problemas do setor, é um momento “em que os artistas devem deixar o protagonismo para as pessoas que atuam na área médica”.

Auxílio emergencial

O debate foi coordenado pela deputada federal Jandira Feghali (PCdoB-RJ), relatora do Projeto de Lei 1.075, de auxílio emergencial para os trabalhadores e o setor de cultura. Depois de passar pela Câmara, o PL foi aprovado na última quinta-feira (4) no Senado e aguarda sanção presidencial. O projeto ganhou o nome de Aldir Blanc, em homenagem ao compositor, que morreu há pouco mais de um mês.

Jandira lembrou que em 2016, após o impeachment, o Ministério da Cultura foi o primeiro a ser “desmontado” por Michel Temer. Houve reação, com o movimento “Ocupa Minc”, e a pasta foi mantida. “Mesmo assim, as políticas estruturantes do setor não voltaram. Depois disso, a gente só veio ladeira abaixo.”

O Observatório da Democracia reúne as fundações Perseu Abramo (PT), Mauricio Grabois (PCdoB), Lauro Campos/Marielle Franco (Psol), Leonel Brizola/Alberto Pasqualini (PDT), Ordem Social (Pros), Cláudio Campos, João Mangabeira (PSB) e Astrojildo Pereira (Cidadania). O coletivo vem realizando mesas temáticas para discutir alternativas contra a crise. Na próxima terça (9), por exemplo, o tema será o mundo do trabalho.

Governo bambo

O país atravessa três crises “com dinâmicas distintas”, analisa Juca Ferreira. A primeira é a sanitária: com um presidente que vem “tergiversando, fazendo questionamentos à ciência, tentando criar um clima favorável a que o povo ignore a pandemia”. E o problema ainda não chegou ao pico, acrescenta.

A segunda crise é econômica. “A pandemia agravou as condições, mas advém desse receituário neoliberal do governo, que vem encolhendo o Estado, desarticulando processos produtivos, reduzindo e muito nossas possibilidades das relações internacionais”, diz o ex-ministro. “Isso deu errado em todos os países que adotaram esse receituário.”

E a terceira crise é a política. Para Juca, o governo está “bambo das pernas”, mas encaminha um projeto de destruição.

“Espero que a gente tenha lucidez de encontrar um caminho. O setor (cultural) está vivendo dificuldades. Tirando os grandes artistas, que de alguma maneira conseguiram fazer um pé de meia, a grande maioria está passando dificuldades. Tenho recebido uma quantidade enorme de mensagens: artistas de rua, circenses, que trabalham na noite, técnicos que trabalham em estúdio, dão suporte aos eventos, produtores.” É um setor com capilaridade e importante para a economia, acrescenta.

Política e cultura

Stepan Nercessian disse ter feito seu trabalho mais recente em março. Depois, teve cancelados um filme e uma minissérie que estavam “engatilhados”, segundo ele. “E eu estou gastando os últimos centavos do que consegui do Fundo de Garantia, e não tem nenhuma perspectiva do que se vai conseguir daqui pra frente”, relata. Os artistas, afirma, são “os primeiros a ser atingidos e os últimos a sair disso tudo”.

Com 61 anos, completados em maio, Marcelo Rubens Paiva acredita que sua geração optou por fazer política por meio da cultura. “Poucas pessoas da minha idade foram para o Congresso, a grande maioria virou roqueiro, escritor, artista. E a gente vê necessidade muito grande de uma renovação política”, afirma, depositando sua esperança na juventude.

Sobre as dificuldades, ele cita também o exemplo da literatura. “Desde o governo Temer estamos sofrendo com o fato de o governo não comprar mais livros para escolas, bibliotecas”, conta – segundo Paiva, isso representa de 30% a 40% do faturamento do mercado editorial. Hoje, acrescenta, existe um “projeto muito claro de eliminação total da cultura, dos valores de altruísmo, de empatia ao outro, de respeito ao meio ambiente, da raça negra, da educação, povos indígenas”.

Cidadania e democracia

“A cultura é fundamental para a formação da cidadania”, diz o escritor. “Quando o Estado é democrático, interessado no bem-estar da população, se preocupa com os valores nacionais, a cultura avança”, afirma, ao citar exemplos como o Cinema Novo e a Bossa Nova, durante o governo JK, e a expansão da produção cinematográfica nos períodos de Lula e Dilma.

“Quando há o regime democrático, que pensa num projeto de nação, a cultura é valorizada. Quando há um período autoritário, a primeira coisa que eles focam é eliminação da educação e da cultura”, observa Paiva. Ele define como “porta-estandarte do fascismo brasileiro a eliminação total e absoluta da cultura”. Para o escritor, existe no mundo uma insatisfação generalizada contra a desigualdade, a violência policial, o Estado capitalista.

Juca Ferreira ressalta a necessidade, para a arte, de manter vínculos com as demandas sociais. “Não dá para construir a democracia convivendo com certas mazelas da sociedade. As favelas são produtos da escravidão, e o que elas recebem do Estado é a polícia. Deveriam ter oportunidades iguais, não dá para construir democracia assim. Essa experimentação de um governo fascista, esse interregno, deve nos levar a compreender alguns aspectos. Temos de dar mais ênfase na luta pela igualdade social”, defende.

“O Brasil tem um lado lindo, generoso, de amor à vida, de liberdade, de navegar nas ondas da sensualidade, mas tem uma lado perverso, cruel. É preciso ter uma visão estratégica de mudar o Brasil, e o ambiente democrático é o melhor caminho para isso”, acrescenta o ex-ministro. Mas não basta remover o atual presidente: “É preciso tirar Bolsonaro e interromper esse processo de reformas econômicas que retiram direitos”.

Stepan declama poesia. Chico César cita a “inusitada união de torcidas organizadas”, referindo-se a manifestações recentes. Não por acaso, canta Pedrada, uma composição que fala dos “cães danados do fascismo”, como diz um trecho da letra. “As ruas precisam ser retomadas por quem é de direito.”

Clique aqui para assistir ao debate na íntegra. A transmissão começa após os 25 minutos.


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