Luto na música

Com Moraes Moreira, o Brasil desceu a ladeira, fez festa no interior e mostrou o seu valor

Cantor e compositor tinha 72 anos. Ele foi um dos criadores do grupo Novos Baianos, que marcou época nos anos 1970

Reprodução Facebook
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Moraes Moreira no seu universo, cantando em uma festa de São João

São Paulo – Um grupo de jovens baianos já estava na estrada em 1968, quando apresentaram um show em Salvador chamado Desembarque dos bichos depois do dilúvio. Em novembro do ano seguinte, a turma desembarcou em São Paulo para disputar o festival de música da TV Record. Antônio Carlos Moraes Pires e Luiz Galvão eram autores e intérpretes de De Vera, que não se classificou para a final. Mas o nome de Moraes Moreira começava a se tornar conhecido, explodindo de vez em 1970, com o grupo Novos Baianos. Moraes morreu nesta segunda-feira (13), aos 72 anos – completaria 73 em julho.

O cantor e compositor morreu em casa, na Gávea, zona sul do Rio de Janeiro. Circula a informação de que teria sofrido um infarto enquanto dormia, mas a causa da morte não foi divulgada oficialmente. Ele mantinha-se em quarentena por causa da pandemia de coronavírus, e na madrugada de 17 de março chegou a escrever um cordel com esse título, mostrando sua preocupação. Moraes tem cadeira na Academia Brasileira de Literatura de Cordel.

Eu temo o coronavírus
E zelo por minha vida
Mas tenho medo de tiros
Também de bala perdida
A nossa fé é a vacina
O professor que me ensina
É a minha própria lida

Assombra-me a pandemia
Que agora domina o mundo
Mas tenho uma garantia
Não sou nenhum vagabundo,
Porque todo cidadão
Merece mais atenção
O sentimento é profundo

Nascido em Ituaçu, cidade da Chapada Diamantina, a mais de 500 quilômetros de Salvador, Moraes tocava sanfona em festas e depois aprendeu a tocar violão. Foi para a capital baiana e conheceu os futuros e eternos companheiros de estrada, como o parceiro Galvão, Baby Consuelo (hoje Baby do Brasil), Paulinho Boca de Cantor, Pepeu Gomes e outros. Se o primeiro disco dos Novos Baianos, lançado em 1970, fez sucesso, o LP de 1972 se tornou um fenômeno.

Acabou Chorare começa com Baby, Moraes e Paulinho cantando Brasil Pandeiro, de Assis Valente. A segunda faixa se tornaria um dos grandes sucessos do grupo e, especificamente, de Moraes Moreira: Preta Pretinha, outra parceria com Galvão.

Nessa época, moraram todos juntos em um sítio em Jacarepaguá, no Rio, o Cantinho do Vovô, uma comunidade hippie em plena ditadura. Um período de produção contínua: em 1973, o grupo lançou Novos Baianos F.C., com uma versão roqueira do Samba da Minha Terra, de Dorival Caymmi. Nos dois anos seguintes, vieram os álbuns Alunte e Vamos pro Mundo.

Nesse ano de 1975, Moraes foi para o mundo e ficou sozinho na estrada, abrindo carreira solo. “Acho que doeu tanto em mim quanto neles”, disse à época à jornalista Ana Maria Bahiana, de O Globo. “Mas no resultado final a saída foi boa. Obrigou uma mudança, sabe, obrigou o pessoal a se virar, procurar coisas novas.” Décadas depois, eles voltariam a se apresentar juntos – em 2016, fizeram o show que marcou a reabertura da concha acústica do Teatro Castro Alves, em Salvador e saíram em turnê.

Enquanto isso, Moraes Moreira foi gravando e colecionando sucessos, como Pombo Correio, Chão da Praça, Bloco do Prazer, Meninas do Brasil, Lá vem o Brasil descendo a Ladeira ou Festa do Interior, hit na voz de Gal Costa. Ou Ser Artista, de letra inspirada.

Eu sonhei que ser artista
era ser equilibrista
na corda bamba do amor
no circo, na vida e na rua
no mundo do samba e da lua
sou um ser tão sonhador

Eu sonhei que ser artista
era ser o que se arrisca
viver num tempo futuro
sendo antena do seu povo
pronto pra nascer de novo
ponto de luz no escuro

Entre Novos Baianos, Trio Elétrico Dodô e Osmar e carreira solo, são mais de 40 discos. Ele também escreveu livros: A História dos Novos Baianos e Outros Versos e Poeta não tem idade.

Em sua página oficial no Facebook, a última postagem, de 28 de março, traz um poema, Sombra:

Nem tudo aquilo que assombra
À escuridão nos reduz
Ouvi dizer que onde há sombra
É certo que haverá luz

Em depoimento, Paulinho Boca de Cantor disse que nos últimos tempos Moraes Moreira era seu amigo de todos os dias, de conversas diárias, às vezes três, quatro vezes. “As nossas ligações geralmente ou era pra falar de trabalho ou era pra dar muita risada de tudo. Da vida, da nossa história. A gente não tem controle sobre nada. A gente está vendo aí o que o mundo está passando. Mas o que é importante mesmo da gente falar, porque a gente não sabe como foi, por que foi, o que vai ser, é que a gente fale desse amor que começou 50 anos atrás, quando encontrei pela primeira ele, Galvão, e as pessoas foram chegando… E fomos fazendo aquela outra família.”

E as canções de meio século atrás seguem vivas, lembra Paulinho. “E o Moraes Moreira era o grande timoneiro. aquele violão que não existe nada igual.” Emocionado e brincando ao mesmo tempo, ele se refere ao grupo como os “usados baianos”.