Polêmica no Carnaval

Mangueira vai levar para avenida ‘uma compreensão bíblica sobre Jesus’

Para o pastor Henrique Vieira, que participará do desfile, o “Jesus bélico, guerreiro, intolerante e armado, pregado em muito lugar", nada tem a ver com o que a Bíblia ensina

Henrique Vieira, ao lado do carnavalesco Leandro Vieira, diz que o enredo retrata um Jesus que ensinou a amar e colocou o amor como a marca da sua vida e dos seus discípulos. 'Um amor que deve ser a marca de quem pretende segui-lo'

São Paulo – O enredo do Carnaval 2020 da escola de samba Estação Primeira de Mangueira, do grupo especial do Rio de Janeiro, cantará na avenida um Jesus Cristo que nasceu pobre, sem a pele branca de sua imagem mais popular. Alguns atores negros já foram inclusive convidados pela escola para representar faces de Jesus na avenida: Humberto Carrão, Lázaro Ramos e Henrique Vieira, também teólogo, historiador e pastor evangélico.

Essas faces representarão o Jesus que andou ao lado daqueles que a sociedade virou as costas, oferecendo-lhes sua face mais amorosa e desprovida de intolerância. Que com sabedoria, separou o joio do trigo, semeou terrenos férteis e jamais deixou sequer uma ovelha para trás. Que exaltou os humildes e condenou o acúmulo de riqueza, insurgindo-se contra o comércio da fé, desafiando a hipocrisia dos líderes religiosos de seu tempo. Que questionou o poder do império romano, condenando a opressão e inflamando o discurso dos algozes com seu comportamento pacifista e suas ideias revolucionárias. E que teve um fim conhecido: foi torturado, padeceu e morreu.

O tema, que já está causando alvoroço  nas redes sociais – há quem diga que a Mangueira é “uma escola partidária de esquerda” e que “vai falar mal de Jesus” – é coerente com  a mensagem da Bíblia segundo o pastor Henrique Vieira, da Igreja Batista do Caminho, em Niteroi (RJ).  “A Mangueira vai levar para a avenida uma compreensão bíblica a respeito de Jesus. Ou seja, muita coerência com o que está na Bíblia, com o Evangelho e com os ensinamentos de Jesus. Então eu vejo na proposta da escola um Jesus muito coerente com aquele que está registrado nas páginas do Evangelho”, disse à RBA.

De acordo com o ator e pastor, também militante dos direitos humanos, o enredo – para o qual contribuiu – retrata um Jesus que ensinou a amar e colocou o amor como a principal característica da sua vida e dos seus discípulos. Um amor, aliás, que deve ser a marca de quem pretende segui-lo”.

 

“Um Jesus que andou principalmente com os pobres, os famintos, os miseráveis e também aquelas pessoas que eram hostilizadas e alvo de preconceito, de discriminação, de violência. O Jesus que acolheu em vez de condenar, que abraçou sem distinção as pessoas ao invés de julgar e excluir, que nunca recorreu a arma, à violência, nunca recorreu a vingança, que nem desejou o mal aos seus algozes. Então esse Jesus, sim, que caminhou com o povo, se colocou ao lado dos pobres, que respeitou as diferenças, que acolheu as pessoas que eram desprestigiadas e alvo de preconceito”.

 

Henrique Vieira lamenta que atualmente, na maioria dos lugares, é pregada uma mensagem distorcida, de um Jesus que quase nada tem a ver com a Bíblia. Hoje muito provavelmente Jesus seria executado em nome de Jesus, porque se prega o Jesus bélico, guerreiro, intolerante, armado, que controla o comportamento das pessoas, que julga, que condena, que promete prosperidade material e acúmulo de riquezas e caminha com os poderosos, um Jesus moralista. E esse Jesus não tem nenhuma conexão com aquele que está nas páginas do evangelho.

Para ele, é evidente, conveniente e oportuno que a repercussão de uma escola com a popularidade da Mangueira, em um desfile que vai ser visto no Brasil inteiro e em muitos outros países, compartilhe com o público a mensagem de um Jesus amoroso e generoso do Evangelho. “É uma espécie de profecia, ou seja, denunciar aquelas mensagens que são falsas e incoerentes para anunciar uma mensagem mais singela, mais simples e amorosa e consequentemente mais coerente com aquilo que está na Bíblia.”

 

Reprodução

Críticas

Considerando a atual conjuntura do país, com crescente discurso de ódio e intolerância, sem espaço para diálogo e sim para o preconceito, inclusive com relação ao carnaval, ao samba, às manifestações culturais e artísticas, as críticas são esperadas. “Além de esperadas, muitas serão injustas, exageradas, violentas. É muito estranho esse momento: As pessoas usam de violência para defender Jesus que jamais usou violência para qualquer coisa – o que é uma grande contradição”.

O importante, acredita, é a consciência tranquila diante da coerência. “E isso tenho muita tranquilidade no meu coração, de que vou participar de um desfile bonito, bem feito, sério, que na minha opinião respeita a mensagem do Evangelho. Quem quiser dialogar sobre isso, inclusive com divergências, o diálogo é sempre muito bem vindo, por que pressupõe reflexão e troca. Agora quem quiser apenas atirar pedra, perseguir, manifestar ódio, eu só vou orar, até no sentido de obedecer Jesus: de perdoar aqueles que nos perseguem, de orar por aqueles que desejam nosso mal. Não pretendo reproduzir ciclo de ódio: pretendo dialogar com quem quer dialogar e orar por quem deseja perseguir”.

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O pastor não tem dúvidas de que o Jesus narrado na Bíblia – do qual ele é seguidor – estaria em meio aos que brincam o carnaval ou que fazem da festa popular espaço para denúncia de injustiças. “Jesus estaria onde o amor se manifesta. Está é a primeira afirmação. Onde existe amor, companheirismo, amizade, celebração da vida, Jesus estaria. Tanto que a Bíblia ensina que Ele andou por tudo quanto é canto, rompeu barreiras culturais, limites geográficos, sentou à mesa, dividiu o pão, foi em festas, multiplicou o vinho em um casamento e se divertia, brincava, conversava, batia papo, participava de refeições comunitárias, jogava conversa fora”.

“O Evangelho relata uma pessoa muito acolhedora e muito leve. Então eu prego essa mensagem e acho que Jesus estaria aí conversando, brincando, celebrando a vida. Ele teria, pelo que percebo do Evangelho, uma visão diante das injustiças do mundo. Muito provavelmente estaria ao lado do povo negro. Muito provavelmente não: certamente estaria com o povo negro, lutando contra o racismo, defendendo as mulheres na luta contra o machismo, junto aos indígenas lutando em defesa de suas terras, junto aos sem teto na luta pela moradia, junto aos refugiados do mundo buscando uma pátria, uma terra-mãe acolhedora”.

Além de celebrar a beleza e a leveza da vida, afirma Henrique Vieira, Jesus estaria muito conectado aos pobres, aos famintos, aos que nada têm, aquelas pessoas que pela cor da pele, orientação sexual, gênero, por endereço sofrem múltiplas violências. “Creio que Jesus estaria menos nos espaços de poder e mais nas favelas, nas periferias, nos assentamentos, nos campos de refugiados. Esse é o Jesus que eu vejo e não acho que seja uma invenção moderna, política e ideológica: é o Jesus que a gente vê nas páginas tão antigas e eternas do Evangelho”.


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