Poesia libertária

Artista-cidadão, Chico César faz música para ‘salvar o pescoço’ nesses tempos conturbados

Cantor e compositor acaba de lançar o álbum "O Amor é um Ato Revolucionário". No "Hora do Rango", artista falou de sua obra, política e cultura

Divulgação
Divulgação
Diante dos sinais de censura do governo de Bolsonaro, Chico César alerta: “Depois que o camarada pulou e está no jardim arrancando suas flores, daqui a pouco ele pode estar dentro de casa arrancando seu pescoço”

São Paulo — Depois de alguns anos atuando como presidente da Fundação Cultural de João Pessoa e como secretário de Cultura do governo da Paraíba, Chico César regressou a São Paulo em 2015. Tinha recém-lançado o álbum Estado de Poesia e encontrou uma cidade mergulhada em uma grave crise hídrica. Ao lado do parceiro Carlos Rennó, estava num ato de denúncia sobre as responsabilidades do governo de Geraldo Alckmin (PSDB) sobre a falta d’água quando percebeu se conectar de modo mais intenso com as questões sociais.

“A partir daquele dia, a minha vida, mais do que nunca, esteve bastante ligada às questões da sociedade, e isso veio pra minha música”, explica o cantor e compositor, durante participação no programa Hora do Rango. Ali, começava a nascer o álbum O Amor é um Ato Revolucionário, lançado agora em 2019. “Quando você lança um disco, já começa a germinar o outro. A cabeça dá uma aliviada e começam a surgir novas canções.”

O fim da experiência como gestor de cultura em seu estado natal e o regresso à capital paulista se misturaram a suas vivências e observações da vida cotidiana para começar a elaborar o novo disco. E havia ainda o Brasil, em ebulição, a lhe inspirar. “A vida cidadã e sociopolítica do Brasil foi ficando bastante conturbada, nervosa.”

Para Chico César, a canção título do novo álbum O Amor é um Ato Revolucionário retrata com fidelidade a proposta musical do trabalho, sem ter que “apressar” o final da música para que ela caiba no tempo do rádio, tendo como resultado faixas compridas, com sete ou oito minutos, e solos longos. “Acho que essa canção define bem o espírito do disco, como conceito lírico, como poesia, assunto, e também a abordagem sonora do disco, com uma banda compacta, mas que soa grande.”

Em resumo, segundo o cantor e compositor paraibano, um álbum feito para pessoas que têm paixão pela música. “Ele tem os assuntos, a política e tal, mas ele tem a música, que acho é um meio de libertação. A música foi quem me trouxe para uma certa transgressão comportamental, juvenil, na adolescência. Esse espírito Woodstock, Hair, o rapaz negro se juntando com a moça branca, a flor no cabelo…”, divaga Chico César.

Escola de música

Artista consagrado, com nove álbuns de inéditas e uma trajetória que inclui discos ao vivo, DVDs, vinis e até livros, sendo um deles de poemas eróticos e outro de contos para crianças, Chico César já tentou ingressar no meio acadêmico e estudar formalmente música. A experiência não foi das melhores e é até contada com bom humor.

Dizendo-se um sujeito “intuitivo” para umas coisas e “tapado” para outras, lembra que foi reprovado no primeiro vestibular do curso de Música Popular da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), um pouco antes de lançar o primeiro álbum Aos Vivos, em 1989. Explica que passou na prova geral e depois foi realizar outras específicas. Cercado de músicos promissores que estavam se conhecendo, Chico pensava que poderia nascer ali um novo Clube da Esquina, com ele sendo uma espécie de novo Milton Nascimento. “Tem aquele monte de caras que tocam pra caramba, e um que não toca pra caramba, mas que compõe”, recorda, entre sorrisos.

“Fiz as provas e, depois do terceiro dia, uma mulher me chamou numa sala e disse: ‘Olha, você é um cara muito musical, é uma pena que haja muitas brechas na sua formação, isso aqui é um curso superior e você precisa fazer um bom curso médio de música para entrar num superior. Então você foi reprovado’”, conta Chico César. “Aí eu disse: ‘Tá bom, eu volto aqui quando vocês me contratarem pra dar workshop ou fazer show, mas vou cobrar caro’.”

Tempos depois, Chico diz ter ficado sabendo que a Unicamp, na prática, havia oferecido um curso que não estava bem formatado para quem buscava a composição. Ele havia sido o único a se candidatar para o curso como compositor, enquanto todos os outros alunos eram voltados para algum instrumento musical. Predestinado, anos depois se apresentou na Unicamp com o show do segundo álbum, Cuscuz Clã.

Rock nordestino

Durante o programa Hora do Rango, Chico César destacou a importância da guitarra na música nordestina, e citou referências como Pepeu Gomes e Robertinho do Recife, o grupo Ave Sangria e as guitarras na obra de Alceu Valença. “Há esse ligação do blues com o baião, que é algo forte, e a música nordestina facilmente vira rock”, pondera, citando ainda o baiano Raul Seixas e muitas de suas canções que flertam com essa simbiose do ritmo regional com o rock.

Com um olhar mais divertido, Chico César acrescenta outro elemento a aproximar o Nordeste com o rock: o sol. “O Nordeste é muito psicodélico. Aquele sol na moleira, meu amigo…é uma viagem, viu? Você fica meio dia em cima de um lajeiro, com o sol na moleira…pense num ácido. Experimenta… Você fica com uma conexão cósmica com o deus-sol.”

Fome e cultura

A verve política transportada para o último álbum e os posicionamentos de Chico César diante da vida nacional sempre fizeram parte do seu modo de ser. Em 1983, por exemplo, diante do corte da verba dos restaurantes universitários realizado pela então ministra da Educação, Esther de Figueiredo Ferraz, da família do último “ditador de botas”, como define o músico, ele e mais seis ou sete colegas participaram de uma greve de fome na Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Chico César se considera um “artista-cidadão”, uma postura que, para ele, pode ser adotada por qualquer profissional, um bancário-cidadão, um químico-cidadão e assim vai. “Política é a vida. Todos nós somos políticos. Me sinto essencialmente artista, apesar de já ter sido gestor na área da cultura.”

E sobre a cultura nacional, o cantor e compositor avalia que a partir das políticas públicas dos ex-ministros da Cultura Gilberto Gil e Juca Ferreira, houve um período em que figuras importantes da sociedade civil viraram governo, o que colaborou para a construção do sistema nacional de cultura, os pontos de cultura, e outros programas significativos.

“Por isso digo que os lados se encontraram. Isso até fez falta em várias áreas, desfalcou a sociedade civil”, explica Chico César. “Era um momento muito propício, era novo. Nós podíamos construir junto com a sociedade, você tinha a participação da sociedade nos conselhos de cultura. Era um outro momento. Tínhamos a possibilidade de trazer recursos do governo federal, coisa que hoje não existe, está difícil ter dinheiro pra cultura.”

Para ele, todas as instâncias de governo, sejam municipais, estaduais ou a União, devem pensar a cultura como um investimento que traz dividendos. “Não é uma despesa, é um investimento. O cinema nacional, o audiovisual, gera muitas divisas para o país, não só o prestígio, mas dinheiro mesmo, porque emprega muita gente, técnicos, atores, iluminadores. E quando aquilo entra em cartaz, tem o pipoqueiro, o bilheteiro…então a gente precisa olhar com muito carinho a cultura brasileira, e sei que temos muitas urgências e muitos problemas.”

Diante dos tempos atuais de retrocesso, confessa não se desesperar com as dificuldades. Acredita que o artista tem uma vida mais tranquila, em qualquer época, do que um professor, por exemplo. “Quando vejo um colega se lamentando muito, digo: ‘Velho, pense num boia-fria cortando cana no interior de Pernambuco. Pense num professor respirando pó de giz e uns meninos filmando ele com celular pra mostrar pra não sei qual polícia ideológica’.”

Como artista-cidadão, Chico César acredita que é preciso pensar em termos de sociedade e não como corporação, ou seja, se interessar por tudo e não só com o próprio umbigo. “Temos que se envolver mesmo com a causa que é de todos, com a democracia, a liberdade e a cidadania”, afirma.

Sobre os movimentos de censura do governo de Jair Bolsonaro (PSL), como o anunciado “filtro” na Caixa Econômica Federal para apoiar ações culturais, ele pondera que determinados setores da sociedade já começam a perceber o que está havendo. “Depois que o camarada pulou e está no jardim arrancando suas flores, daqui a pouco ele pode estar dentro de casa arrancando seu pescoço.”

É com essa metáfora que Chico César procura despertar a consciência das pessoas, seja por meio da música ou participando de atos e manifestações. Antes que seja tarde e o pescoço corra perigo.