Um país perdido

Banda As Bahias e a Cozinha Mineira critica a falta de ética da sociedade brasileira

“Você não pode conviver com a injustiça e 'fazer a egípcia’”, diz a cantora Raquel Virgínia. Grupo lança terceiro álbum, "Tarântula"

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Destaque na nova cena da música brasileira, grupo segue colocando o dedo na ferida dos problemas nacionais

São Paulo — Pouco mais de três anos depois de lançar o primeiro álbum, Mulher, As Bahias e a Cozinha Mineira apresentam agora o terceiro, Tarântula. Da gravação independente em 2015 ao disco mais recente, os integrantes do grupo concordam que ter assinado com a gravadora Universal Music trouxe vantagens. A maior estrutura de produção tem deixado o trio formado por Raquel Virgínia, Assucena Assucena e Rafael Acerbi mais livre para se dedicar exclusivamente à música, razão pela qual se uniram e rapidamente se tornaram sensação na música brasileira.        

“Agora a gente consegue se voltar mais pra nossa veia artística e isso está reverberando no que a gente entrega”, diz Raquel Virgínia, durante o programa Hora do Rango. Na mesma linha, Rafael Acerbi diz que o grupo está podendo fazer o show e o novo disco “do jeito que sempre sonhou”.

Assucena Assucena cita outro elemento positivo em ter a companhia de uma gravadora: ela acredita que a música do grupo pode ganhar ainda mais ouvintes a partir da melhor estrutura. E isso, avalia, é muito importante por suprir a ausência de mulheres trans no mercado musical. “É uma trajetória importante não só para As Bahias e a Cozinha Mineira, como também para as mulheres trans na música.”

O feminismo e a reflexão sobre temas sociais e políticos seguem presentes no álbum Tarântula. A começar pelo nome, que faz referência não à aranha peluda e assustadora, mas sim à operação da polícia de São Paulo contra os travestis em 1987. Na ocasião, uma verdadeira caçada aconteceu nas ruas da cidade, sob a alegação oficial, e medonha, de prevenir a expansão do vírus da aids.

A canção Carne dos meus versos, composta por Raquel Virgínia, é na opinião da colega Assucena uma das mais bonitas do novo álbum. Uma música sobre pessoas abandonadas que conseguem dar a volta por cima, com referência ao “anjo torto” de Carlos Drummond de Andrade, no Poema de Sete Faces.

“Eu tava num boteco sozinha, no Rio de Janeiro, tomando cerveja e pensei: ‘Caraca, até um anjo torto esnoba uma mulher trans’. É uma vida de muita solidão. Ao mesmo tempo em que você está muito feliz porque está sendo quem é, deixando com que sua natureza exista, também gera muita solidão. A transexualidade é um paradigma muito grande pra sociedade. E isso causa um afastamento das pessoas”, explica Raquel. Para ela, tudo o que foge do padrão acaba sendo abandonado. E a transexualidade, pondera a cantora, foge de todos os padrões. “Embora falando de uma coisa muito pesada, essa música delicadamente aborda isso.”

“Quando eu nasci
Ninguém disse nada
Tomei muitas palmadas
E vi algumas mentiras

O anjo torto
Até me esnobava
Atravessava a calçada
Pedi a mão, me cuspia”

Trecho da música Carne dos meus versos, do álbum Tarântula

Da escravidão à transfobia

A crítica social contida nas canções da banda é uma decorrência natural vinda de três pessoas que se conheceram cursando História na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLECH). Para Raquel Virgínia, seria até estranho se o grupo não se comprometesse com os dilemas da sociedade brasileira. “As Bahias e a Cozinha Mineira tem essa marca. Óbvio que a gente vem equilibrando o tanto que gente fala disso e o tanto que a gente mostra na nossa música, até porque acredito muito na nossa música.”

Entre os dramas que a sociedade brasileira ainda precisa enfrentar, a cantora destaca os quase quatro séculos de escravidão. “Isso não é qualquer coisa. E acho que nós ainda não conseguimos entender a profundidade disso. Tanto não entendemos que ainda estamos patinando numa série de questões em que a raiz é a escravidão”, afirma Raquel.

A artista acredita ser grave o fato das pessoas ainda desconhecerem o significado da palavra “ética”. “A gente convive com chacinas. A gente convive com prisões arbitrárias. A gente convive com o presidente negando fome num país onde se morre de fome. E todas as convivências que a gente vai aceitando, seja artista ou não, elas estão dentro de um padrão ético. Se você dorme em paz convivendo com tudo isso, é uma questão ética.”

Ciente da força da posição de quem tem microfone na mão e costuma estar diante de câmeras, Raquel reconhece que a palavra do artista pode ter mais projeção, mas defende que todo cidadão atue politicamente e tenha compromisso com o país. “Você não pode conviver com a injustiça e ‘fazer a egípcia’”, diz ela, com referência à gíria para “virar a cara”, fingir que não viu ou demonstrar indiferença. 

Assucena analisa que as maiores heranças políticas dos últimos anos são o crescimento dos movimentos feminista, negro e LGBT. Em comum, a defesa da liberdade como princípio e, mais ainda, a liberdade de corpo e de comportamento. “Não é moda a transgeneridade. Saímos do armário pra não voltar pra ele. A bicha saiu da jaula pra continuar sendo bicha. É um princípio e uma herança que a gente vai ter que lutar por ela. Têm diretos conquistados, mas são poucos ainda.”

Ela acredita que os movimentos sociais estão hoje mais organizados e lembra da participação da banda na Ocupação 9 de Julho, em parceria com Preta Ferreira. “É um absurdo que aquela menina esteja presa, lutando por seu direito constitucional. A Ocupação 9 de julho é um exemplo de ocupação, de uma comunidade gerindo um espaço que se pretende a casa popular como direito constitucional.”

A herança histórica do Brasil e os tempos conturbados, fazem Rafael Acerbi ter ainda mais convicção na importância da arte. Como exemplo positivo, o guitarrista cita a Virada Cultural, em São Paulo, com seus muitos palcos e intensa programação. “A ilusão que a gente propõe, o tipo de linguagem que a gente constrói, é muito poderoso. A arte educa. Ela pode ser pedagógica, pode ser de confronto, mil facetas possíveis. É uma linguagem que afeta as pessoas. Então é muito delicado esse momento agora e temos que continuar.”

Ouça como foi o programa

      

Contudo, com tudo

E As Bahias e a Cozinha Mineira continuam. O novo álbum tem quatro canções definidas por Assucena como sócio-políticas, quase um “lado b” do disco: Mátria, Pipoco e Pipoca, Chute de direita e Fuça de um fuzil. Há ainda a estreia de Rafael Acerbi como cantor, na música Volta. Em Das Estrelas, Assucena conta ter escrito a letra pensando no lado afetivo, mas também refletindo o Brasil, um país que se perdeu.

“Você costumava olhar as estrelas
Para se guiar no mundo
Com tudo, com tudo, tudo, tudo amor
Você se perdeu”

Trecho da música Das Estrelas, do álbum Tarântula