Coração Selvagem

Belchior, esse desconhecido, hoje ‘teria a mesma angústia que nós temos’

Pesquisadora, biógrafo e músico falam sobre canções e histórias do cantor cearense, que morreu há dois anos. Do Brasil atual e até de Raul Seixas

Cléo Velleda/Folhapress
Cléo Velleda/Folhapress
O compositor e cantor cearense Belchior, muito mais que apenas um rapaz latino-americano

São Paulo – Quando Belchior morreu, em 30 de abril de 2017, começaram a surgir informações sobre seu paradeiro durante os últimos 10 de seus 70 anos, cinco no Uruguai e cinco no Rio Grande do Sul, deixando para trás um carro no aeroporto, uma legião de admiradores e muitos mistérios. As descobertas permanecem até hoje, atesta o jornalista Jotabê Medeiros, autor da biografia Apenas um Rapaz Latino-americano, lançada justamente em 2017. Durante evento realizado ontem (3) à noite, uma pergunta foi dirigida a Jotabê e à pesquisadora Josy Teixeira, autora de tese de doutorado defendida na Universidade de São Paulo (USP) sobre o cantor cearense. O que ele diria sobre esse Brasil “que está se fechando?”, expressão usada por Tião Nascimento, que acompanhava a conversa em um local adequado para o tema, o alternativo Espaço Cultural Latino-americano (Ecla), no bairro da Bela Vista (Bixiga), região central de São Paulo.

“Ele teria a mesma angústia que nós temos”, responde Jotabê, para quem “gostar de Belchior significa não compactuar com certas práticas antidemocráticas, significa tolerância com a diferença”. Em um momento de “privação de direitos” como o atual, ele se angustiaria, como angustiados estão Caetano Veloso, Gilberto Gil e outros. O jornalista cita ainda Sérgio Mamberti, que fala em uma luta pela liberdade no Brasil atual.

Os cantores baianos – e mais um – estão no título da tese de Josy, aprovada em 2014 e disponível na internet: Fosse um Chico, um Gil, um Caetano: uma análise retórico-discursiva das relações polêmicas na construção da identidade do cancionista Belchior. Um trabalho de 691 páginas, em que a pesquisadora aborda a presença de outras obras na obra do autor de Como Nossos Pais e, de certa forma, o embate com mitos musicais de sua geração. “Eu costumo dizer que o Bel (termo afetuoso usado pelos amigos para se referir ao artista) é um dos compositores mais densos da música brasileira”, afirma. Mais complexo, talvez, que o próprio Chico Buarque. “Eu daria o Camões para o Belchior também”, acrescenta Josy, lembrando do prêmio recentemente concedido a Chico, que será o primeiro a recebê-lo fora do universo estritamente literário.

Sem-teto em São Paulo

“Ele (Belchior) é parte do que narra. Ele sente as coisas que narra, foi sem-teto em São Paulo”, lembra Jotabê –paraibano de nascimento, com longa passagem por alguns dos principais cadernos culturais do país e hoje na revista CartaCapital –, referindo-se aos primeiros tempos do artista no Sudeste. Uma história retratada, por exemplo, em Fotografia 3×4.

Eu me lembro muito bem do dia que eu cheguei
Jovem que desce do Norte pra cidade grande
Os pés cansados e feridos de andar légua tirana

Conterrânea de Belchior, Josy se diz surpresa com crescente discurso de ódio, vindo à superfície nos últimos anos. “A obra dele vai contra tudo aquilo que a gente está vendo representado pelo atual presidente. É só ler, está tudo na obra dele”, afirma a pesquisadora, citando versos de Arte Final, que está no último disco de inéditas do compositor, Bahiuno, lançado em 1993.

Esperávamos os alquimistas, e lá vem chegando os bárbaros
Os arrivistas, os consumistas, os mercadores

“Em 1993, ele já estava falando sobre a barbárie”, observa Josy, falando de uma Brasil “em guerra”, onde se mata mais do que muitos países em conflito. “Certamente, ele estaria do nosso lado”, emenda. “Na defesa das minorias, dos trabalhadores, das mulheres, das crianças. Ser fã de Belchior e ser contra a diversidade… Eu não entendo.”

Arquivo Pessoal/Facebook

Jotabê Medeiros, Josy Teixeira e Daniel Medina em evento sobre a vida e a obra de Belchior, ‘um dos compositores mais densos da música brasileira’

“Estaria com a gente, mas sempre criticamente”, completa o compositor e cantor Daniel Medina, que durante a noite interpretará várias obras de Belchior, como Bahiuno, Pequeno Mapa do Tempo, Mucuripe (parceria com Fagner, com quem teve relação conflituosa), Sujeito de Sorte, Como nossos Pais e Coração Selvagem. Com 31 anos, Daniel vive há três em São Paulo, vindo também de Fortaleza. Aqui, ele lançou o CD Evoé, do qual canta Nós ao Vivo: “Apesar dos perigos/ Nós estamos vivos”.

Gentil e engraçado

Jotabê conta que Belchior morava justamente no bairro da Bela Vista quando preparava seu segundo LP, conhecido pela faixa inicial, Mote e Glosa, “que remete diretamente à poesia do João Cabral de Melo Neto”, observa o biógrafo.Da Rua 13 de Maio (um das mais conhecidas do popular Bixiga), ele caminhava até a Avenida Paulista.” Uma das faixas desse álbum chama-se Passeio, declamada no início da noitada pelo professor Francisco Denis, da Universidade de São Paulo (USP).

Vamos andar
Pelas ruas de São Paulo
Por entre os carros de São Paulo
Meu amor, vamos andar e passear
Vamos sair pela Rua da Consolação
Dormir no parque em plena quarta feita
Ensinar com o domingo em nosso coração

“Belchior era um cavalheiro, um homem gentil, de fino trato, como talvez não existe mais”, define Jotabê. Ao mesmo tempo, um sujeito engraçado, capaz de fazer piada diante de um delegado com um revólver na cintura, como ocorreu em uma viagem pelo Nordeste. “Ninguém tinha ideia da complexidade da obra dele.” Segundo o biógrafo, Belchior passou a ser “evitado” pela mídia nos últimos anos, identificado, talvez, com um certo universo brega. “Os últimos discos dele foram solenemente ignorados pela imprensa.”

Ele conta uma história sobre a música Comentários a Respeito de John, que o jornalista sempre tomou como uma referência ao beatle John Lennon. É uma parceria entre Belchior e José Luiz Penna, que integrava o grupo de Tiago Araripe e depois se tornou mais conhecido pela atividade política. Araripe contou a Jotabê que, na época em que a canção foi feita (1979, um ano antes da morte de Lennon, nos Estados Unidos), havia um conhecido que se dizia “assombrado” pela presença de John, e a música surgiu, então, para ajudá-lo a “exorcizar”, bem diferente do que o biógrafo supunha. “São muitas histórias desse tipo, que estão aparecendo.”

Por falar em histórias, Jotabê prepara-se para lançar, provavelmente em setembro, uma biografia sobre Raul Seixas, pela mesma editora (Todavia). Belchior e Raul têm “componentes de outsiders, mas não por deliberação própria”, diz. “Eles não eram reconhecidos.” O jornalista conta que dois autores preparam um livro sobre a “fase uruguaia” de Belchior, já no período de sumiço completo, iniciado em 2007.

Grande nome da MPB

Josy foi estudar Letras na Universidade Federal do Ceará (UFC) e lembra que havia estranheza em relação a Belchior em sua própria terra. Aquele bigodudo de voz fanhosa e brega?, diziam. Mas, trabalhando em rádio e fã de música, escolheu Belchior e sua obra para estudar, o que continuaria nos trabalhados de mestrado, na própria UFC, e doutorado, já na USP.

Ela lembra de uma brincadeira do artista, que acrescentava sobrenomes dos pais. Chamava-se, na verdade, apenas Antônio Carlos Belchior, mas incluindo “Fontenelle Fernandes” tornava-se, segundo gostava de brincar, “um dos grandes nomes” da música brasileira. “Ele cria uma narrativa sobre a própria história.”

Em 26 de outubro de 2016, quando Belchior completou 70 anos, Josy enviou um longo e-mail ao artista. No final, a pesquisadora citou um acalentado projeto, que ele não chegou a concluir: “Não vejo a hora de ler a tradução da Divina Comédia“.

A mensagem trazia ainda um pedido carinhoso: “E vê se não some”. Ele partiria seis meses e quatro dias depois.

Para finalizar, Daniel canta Como Nossos Pais. Está quase deixando o violão, quando o público pede Coração Selvagem. Lá fora, na rua, bares deixam a TV ligada na transmissão de Chile x Peru, pela Copa América, do continente de onde Belchior disse preferir o tango argentino ao blues.

Meu bem, talvez você possa compreender a minha solidão
O meu som e a minha fúria e essa pressa de viver
E esse jeito de deixar sempre de lado a certeza
E arriscar tudo de novo com paixão
Andar caminho errado pela simples alegria de ser