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Canal ressignifica a cozinha e transforma a pia em lugar de escuta

No canal Ter.a.pia, pessoas comuns contam histórias de vida, enquanto lavam a louça, e criam um espaço de empatia e reflexão

REPRODUÇÃO
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Com quase cinco milhões de visualizações, a história de Ana, sobre não querer ser mãe, chegou em outras mulheres

São Paulo – Ouvir o que o outro tem a dizer é um ato que quando ampliado pode criar oportunidades para aproximar as pessoas e estabelecer relações de empatia. Pode também trazer para a reflexão conteúdos que passam renegados ou sem atenção no dia a dia, como tem mostrado o  canal do Youtube Ter.a.pia , fundado pelos comunicadores Lucas Galdino e Alexandre Simone, onde pessoas comuns contam histórias de vida, enquanto lavam louça.

O projeto é uma forma de ressignificar a cozinha, além de um espaço doméstico, e compartilhar os pensamentos enquanto se lava a louça. “Quando as pessoas vão lavando a louça, até as coisas pessoais ruins são levadas ralo a baixo. Ao contar as histórias, você reflete ali, criando até outro significado para aquela experiência”, explica Galdino.

A falta de tempo ou espaço para ouvir quem está próximo foi o gatilho para a criação do canal. Apesar de ser muito próximo de sua prima, Alexandre não sabia sobre a violência obstétrica sofrida por ela. A partir do momento que soube, percebeu que algo no relacionamento estava errado. “Nunca paramos para ouvir as pessoas, de fato, além do convencional”.

Os vídeos do canal são chamados de “sessões” e as primeiras edições foram feitas com pessoas mais próximas. Com a expansão do projeto, já abordaram temas como bissexualidade, maternidade, racismo, luta contra câncer, empreendedorismo feminino, espiritualidade e até fetiches.

“A gente percebeu que com essas histórias poderíamos abrir um diálogo maior, trazer mais reflexão sobre alguns assuntos. Tudo isso numa época em que as pessoas são mais individualistas. Algumas histórias que trazemos no canal são temas mais marginalizados na sociedade. Nossa curadoria pensa no que vai criar empatia nas pessoas”, explica Galdino.

A escolha cozinha também é simples. O fundador do projeto lembra que todo almoço ou festa se acaba na cozinha, com as pessoas lavando a louça e compartilhando parte de suas experiências. “A cozinha é um lugar íntimo e particular e se ela abre esse espaço, significa que você é bem-vindo.”

Representatividade

Ao servir como um meio de ampliar as diferentes vozes na sociedade, o feedback do público é positivo e o canal recebe inúmeras mensagens de pessoas que se sentem representadas com os relatos. Um dos maiores exemplos do canal é de Ana, que aos 27 anos, decidiu que não quer ser mãe e conta sobre as críticas recebidas por conta de sua escolha.

Com quase cinco milhões de visualizações, a história de Ana chegou em outras mulheres. “O vídeo teve muitos comentários positivos e, depois de ter uma grande repercussão, ela mandou uma mensagem incrível para nós, dizendo que “na vida dela nunca imaginaria representar alguém e que pôde representar muitas mulheres. É muito bonito ver isso”, conta Lucas.

O perfil dos espectadores do canal chama a atenção: cerca de 95% é composto por mulheres. Na avaliação do fundador do Ter.a.pia, boa parte dos homens se fecham na hora de expor seus sentimentos. “As mulheres são mais abertas ao diálogo e mais empáticas. Isso é motivado pela questão da masculinidade do homem, dele recusar a se abrir aos sentimentos. É algo estrutural. A maior parte das pessoas que participa são mulheres e homens gays, isso explica essa questão também”, acrescenta ele.

Histórias

Durante as quase 50 sessões, diversos relatos e personagens chamam a atenção. A rapper Jupat, por exemplo, conta como aconteceu seu processo de transição de gênero “tardio”, aos 30 anos. Ela fala sobre o apoio essencial de sua mulher, a aceitação dos familiares e amigos, e como o rap a ajudou traduzir e escoar todo esse mergulho interior.

“O meu processo de me colocar no mundo foi só aos 30 anos e ainda enfrento muita coisa. Nessa transição, existe outra dificuldade, pois já se constrói uma vida social naquele gênero e, depois, tem que mostrar quem eu sou. Na necessidade de enfrentar o mundo e sozinha, comecei a escrever rap”, conta a artista.

A história de Malu, prima de Alexandre, que resultou na criação do canal, é comovente. Grávida de gêmeas, Malu teve uma gestação tranquila, até a hora do parto. Depois do nascimento dos bebês, colocaram ela no corredor na maternidade para esperar o efeito da anestesia passar.

“Depois do parto, viram que meu plano era só enfermaria. O médico veio até mim e disse “se eu soubesse que ganharia só R$ 700 para esse trabalho todo, eu nem teria vindo”. Eu estava com muita dor e disse para ele, que respondeu: “come arroz e feijão que passa”, relata Malu.

Para Lucas, a ideia não é transformar a cozinha e a louça em consultório de análise terapêutica, mas numa forma de reaproximar ainda mais as pessoas. “A gente não dá voz para ninguém, cada um tem sua voz. Nós somos só um mediador para ampliá-las”, finaliza.

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