Memória

Uma prece por Ana Rosa Kucinski, que tem história resgatada em livro

Pesquisadora narra trajetória de professora e militante, desaparecida em 1974 com seu companheiro. Escritor e jornalista Bernardo Kucinski procura até hoje pela irmã

Trecho de capa de Kaddish/Reprodução
Trecho de capa de Kaddish/Reprodução
Livro sobre Ana Rosa Kucinski tem impressão após atingir meta de pedidos pelo site da editora

São Paulo – Kaddish (Prece por uma desaparecida) é o título do livro escrito por Ana Castro, que acaba de ser lançado pelo grupo editorial Livramento. No ritual judaico, é uma oração feita logo depois do sepultamento. Ana Rosa Kucinski Silva não foi sepultada. Desapareceu em 22 de abril de 1974, em São Paulo, aos 32 anos, juntamente com seu companheiro, Wilson Silva, com quem se casou em sigilo em 1970. Nunca mais se soube deles. O escritor e jornalista Bernardo Kucinski até hoje procura pela irmã, e seu ingresso na literatura de ficção, há quase uma década, foi inspirado na busca de seu pai por Ana Rosa.

A história sem fim é narrada por Ana Castro, pesquisadora e autora do documentário Coratio, que também trata da ditadura e da violência do Estado. O livro de 200 páginas foi escrito com base em depoimentos de amigos e colegas de Ana Rosa, que se formou em Química pela Universidade de São Paulo, do irmão Bernardo e da correspondência familiar que se preservou. Assim, é possível conhecer um pouco de sua trajetória e seu pensamento. Ela é descrita como uma pessoa direta no convívio, por vezes dura, mas afável com aqueles de quem gostava.

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Estudante e profissional na área de exatas, Ana Rosa sempre teve gosto por música (erudita em especial), teatro, literatura, cinema. E também era uma observadora crítica da realidade. Em suas cartas, traz sempre comentários sobre o momento político do país, que muitas vezes revelam uma incômoda proximidade com os tempos de hoje, e faz várias críticas à imprensa. Também revela uma relação familiar conturbada (além de Bernardo, havia outro irmão, Wulf) e muitos dilemas existenciais.

“Eu me conformo porque parece que não sou só eu que estou cheia, por aqui todo mundo anda cheio e, pelo que a Isa Mara me contou da Europa, por aí também as pessoas estão cheias”, escreveu em 1971 a Bernardo, que morava na Inglaterra, trabalhando na BBC. “Uma coisa que atrapalha também é isolamento. Todo mundo tem medo de todo mundo. Não tem zum-zum nenhum por aqui. É uma estagnação bárbara. Cada dia que a gente passa, apesar de inútil, parece um milagre, não sei…”

Durante bastante tempo, Ana teve uma “vida dupla”, com sua vida profissional e pessoal e a atividade de militante política. Depois da Ala Vermelha, ela integrou a Ação Libertadora Nacional (ALN), da qual Wilson Silva teria sido “peixe grande”, na avaliação de Bernardo.

Por alguns relatos, Ana Rosa, mesmo em perigo, não quis deixar o Brasil para ficar ao lado do companheiro. O historiador Moniz Bandeira, por exemplo, lembra de um pedido enfático de Ana para que ele tentasse convencer Wilson a sair do país, enquanto o próprio Wilson dizia que aquele seria seu último ano de vida.

Naquele 22 de abril de 1974, Ana Rosa encontrou-se com a amiga Ignez Salas Martins, na Faculdade de Saúde Pública da USP. Ela queria ajuda para convencer o chefe a dar uma licença para tratamento médico – e assim, quem sabe, sumir por uns tempos, já que estava na mira da ditadura. Conversaram por volta das 11h.

Ana disse que voltaria às 14h para juntas conversarem com seu chefe e orientador. Explicou que tinha antes um compromisso na Praça da República. Ao sair do prédio, encontrou outra amiga, Sophia Szarfarc, e disse que estava sendo seguida. Nunca mais voltou.

No livro, Ana Castro lembra que o destino de Ana Rosa e Wilson Silva ainda é nebuloso. Ela teria sido presa perto de onde morava, na Pompeia, zona oeste de São Paulo. Ele, horas antes, capturado na Avenida 23 de Maio, região central. Ambos teriam sido levados para a chamada Casa da Morte, em Petrópolis (RJ).

Por um relato do ex-delegado do Dops Cláudio Guerra, os corpos foram incinerados em uma usina no norte do estado do Rio. “Nunca se soube quais eram as acusações formais contra eles”, lembra a autora. Em 26 de fevereiro, foi lavrada uma certidão de óbito de Ana Rosa Kucinski (ou Ana Rosa Kucinski Silva), tendo o irmão Bernardo como declarante.

Em rede social, a autora do livro, que foi convidada por Bernardo para escrevê-lo, lembra que Ana Rosa é uma das 210 pessoas ainda desaparecidas desde a ditadura. “Que a memória da Ana Rosa possa reavivar em nós o espírito de resistência e a coragem para mudar o mundo. E que não nos falte ousadia para que gritemos bem alto: Ana Rosa, presente. E que isso nunca mais aconteça.”

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