Cinema

O que faziam os americanos no Nordeste nas décadas de 1960 e 1970?

'Em Nome da América', de Fernando Weller, resgata histórias dos voluntários do programa Corpos da Paz e traz à tona os esforços dos Estados Unidos para que a região não se tornasse uma 'nova Cuba'

Fotos: Divulgação

Doc traz as contradições entre a política exterior americana e as motivações dos voluntários na época do golpe de 64

Ao longo dos anos 1960 e 1970, quase seis mil jovens norte-americanos vieram para o Brasil para fazer trabalhos humanitários pelo Corpos da Paz, programa lançado em 1961 pelo presidente John F. Kennedy. Muitos desses voluntários viveram os seus tempos mais memoráveis no Nordeste do Brasil. Mas, além da boa vontade de muitos deles, havia muito mais coisas por trás da “benevolência” do governo americano. É essa a história contada pelo documentarista carioca radicado em Pernambuco Fernando Weller no longa-metragem Em Nome da América, que estreou na quinta-feira (5) nos cinemas.

Por meio de entrevistas, imagens de arquivoe documentos históricos, o documentário segue o rastro de alguns ex-voluntários e de brasileiros para contar esta história tão pouco conhecida. O que vem à tona nesta intrigante investigação de Weller são as contradições entre a política exterior norte-americana e as motivações dos voluntários neste período em que o golpe militar se gestava no Brasil e o mundo vivia o auge da Guerra Fria.

Segundo o filme, uma parte desses jovens vinha ao Brasil tocada pelos movimentos dos direitos civis que varriam os Estados Unidos nos anos 1960 e esperava encontrar no programa uma forma de ativismo social. Outros viram uma forma de escapar do conflito bélico no Vietnã.

Mas os Corpos da Paz foram também uma das maneiras de os Estados Unidos intervirem no Brasil, que temiam, particularmente o Nordeste,  que o país se transformasse em uma “nova Cuba”, devido à grande influência das Ligas Camponesas na região.

Além das entrevistas, um dos documentos que guiam o longa-metragem é o livro de Joseph A. Page, A Revolução que Nunca Houve – O Nordeste do Brasil 1955-1984, que revela detalhes da política norte-americana de combate ao comunismo no Nordeste. Instituiçõespassaram a levar jovens brasileiros para fazer “cursos de preparação sindical” nos Estados Unidos por meio de um organismo chamado Iadesil – Instituto Americano Para o Desenvolvimento do Sindicalismo Livre –, que acabou se infiltrando no programa de voluntariado.

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Movimento das Ligas Camponesas foram extintos pelo governo militar com ajuda da igreja

Igreja, latifundiários, Estados Unidos…

o era à toa que os jovens americanos eram vistos com desconfiança pela população local. Todos os entrevistados que fizeram parte dos Corpos da Paz relembram no filme a sensação de desconforto trazida pela situação. “Nós sabíamos que os Estados Unidos tinham apoiado o golpe militar. Isso era sabido. Mas, ainda assim, queríamos fazer nosso trabalho. Nós entendíamos a situação política geral mas, mesmo assim, a gente queria fazer algo de bom. Em 1970, nós fizemos um protesto contra a guerra [do Vietnã] no consulado americano, em Recife. Suspendemos as atividades por 40 dias. (…) Talvez a gente tenha sido ingênuo, mas quando você tem 21 ou 22 anos, você pensa que o mundo é maravilhoso”, afirma John Reeder, que foi um voluntário do programa de 1969 a 1971.

Reeder participa de um encontro organizado por Dodó Félix, ex-colaborador do Sindicato Rural de Bom Jardim, que apresenta ao diretor do filme integrantes do movimento sindical rural de Pernambuco que atuavam na região naquela época. Félix afirma que as entidades de trabalhadores da região foram fomentadas pelo governo ditatorial por meio da igreja. “O golpe de 1964 foi uma paranoia do governo americano. Usaram a igreja para combater as Ligas Camponesas, que já estavam extintas – foram extintas com o golpe – e aqui em Bom Jardim, o Sindicato de Bom Jardim foi o primeiro a ser fundado e, depois, a cooperativa. As reuniões eram na igreja”, declara Félix.

A igreja católica teve um papel central na luta contra os comunistas. Nos anos 1960, foi criada com a ajuda norte-americana uma organização chamada Sorpe, o Serviço de Orientação Rural em Pernambuco. Os padres lideraram a formação de cooperativas e sindicatos rurais legalizados pelo regime militar”, narra Fernando Weller.

Tendo como fio condutor o programa Corpos da Paz, Em Nome da América acaba fazendo uma radiografia política precisa do Brasil de ontem e de hoje. “Procuro explorar a presença ambígua dos americanos no Brasil sem julgar os personagens, mas situando suas ações em um contexto político maior, muito além das vontades individuais. Os voluntários dizem que o programa foi mais importante para eles do que para os brasileiros, pois tomaram contato com um mundo para além da bolha norte-americana. A gente percebe que, no Brasil, também vivemos em uma bolha, talvez mais fechada até. Sabemos pouco e, principalmente, menosprezamos a capacidade que governos, agências, empresas ou grupos políticos têm para interferir no curso da nossa história, sobretudo quando a intenção é manter as coisas como estão. Foi assim nos anos 1960 e não poderia ser diferente hoje”, afirma o diretor.

Em Nome da América
Direção e roteiro: Fernando Weller
Produção: Jaraguá Produções e Plano 9 | Carol Ferreira e Mannu Costa
Direção de fotografia e câmera: Nicolas Hallet
Som direto: Danilo Carvalho
Montagem: Caioz e João Maria
Trilha sonora: Juliano Holanda
Edição de som e mixagem de som: Catarina Apolônio
Direção de arte e identidade visual: Paula K. Santos | Juliana Santos
Distribuição: Inquieta Cinema | Mariana Jacob, Fernanda Cordel e Laura Martinez
País: Brasil
Gênero: documentário
Duração: 96 minutos
Ano: 2017