lugar mais sombrio

Milton Hatoum: ‘Parece que vivemos em um pesadelo’

Escritor falou em São Paulo sobre seu romance 'A Noite da Espera', que trata das angústias dos jovens que amadureceram durante a ditadura

fespsp/divulgação/icarabe

‘Tempos em que até a arte é praticamente banida. É incrível como vai e volta (a repressão)’

São Paulo – Intolerância, incertezas e o vazio de uma geração sufocada pela ditadura civil-militar (1964-1985) são os temas centrais do mais recente livro de Milton Hatoum, A Noite da Espera (2017). Ele esteve na noite de ontem (24) na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (Fespsp), onde falou sobre sua obra e fez paralelos com a atual situação do país. “Achava que algumas coisas poderiam desandar, mas parece que vivemos em um pesadelo”, disse, sobre as mazelas que voltam a assombrar o país nos contextos políticos e sociais após um breve momento de aparente consolidação democrática.

O escritor contou que o projeto do livro, o primeiro de uma trilogia intitulada O Lugar Mais Sombrio, vem de longa data, mas que sua entrega ao tema esperava o instante certo. “Tinha receio de tocar em alguns temas em algum momento da minha já distante juventude. Achava o grau de complexidade da época difícil de ser abordado, então adiei e quando me entreguei a ele, há exatos 10 anos, o Brasil estava em outra toada”, disse. “Lembra de 2008? Parece outro país. Parece que estamos em meio a um pesadelo, que nada daquilo aconteceu ou que nada hoje é real. Não sabemos para onde vamos, se pensamos que foi tudo um sonho ou se isso hoje é este sonho enterrado.”

A história, por vezes, se confunde com a própria trajetória do autor. Assim como Hatoum, o protagonista, Martim, vai morar jovem em Brasília e passa por um processo de amadurecimento na capital durante a passagem dos anos 1960 para 1970. Por isso, a obra é considerada um “romance de formação”, estrutura literária que acompanha o processo de aprendizagem do protagonista. E é nesta linha que a obra honra o legado dos grandes nomes do gênero como Johann Wolfgang von Goethe e Thomas Mann, sem deixar de lado a poética com referências de Fernando Pessoa e a inteligência na utilização do idioma escrito como é possível saborear nas obras de Guimarães Rosa.

O autor diz não ter saudade dos tempos de sua formação. “A saudade pode ofuscar o presente e gosto de viver com os pés no chão e a cabeça viajando. O passado interessa para entender o presente, mas existe um perigo. Existe uma massa de alienados proto fascistas e fascistas, literalmente, que se recusam a entender o passado. Ela sim, sente uma nostalgia dessa época bruta.”

São movimentos ultraconservadores, reacionários, que exaltam os tempos sombrios de repressão. Hatoum lamenta sua existência e vê a formação de ciclos relacionados à opressão. “Essas lideranças que estão ai, como o MBL e o Vem Pra Rua, ligadas à direita, são farsantes. Usam discursos oportunistas, moralistas e antidemocráticos, sobretudo. Eles carregam o discurso arbitrário e proto fascista”, disse.

Tempos de intolerância que fazem do livro uma peça de reflexão, introspectiva, com forte pessimismo e ares de uma geração perdida. “Se trata da trajetória de um personagem com suas metas, com seus anseios, em uma sociedade cujas normas não obedecem ao agregado. A trajetória da passagem do jovem para a vida adulta de forma problemática (…) É a história do desencanto, do indivíduo que persegue uma meta, vai em busca de um sentido para a sua vida. Sobre isso que o romance trata. E essa busca não se completa, ele não completa seus anseios então, vive um momento de renúncia e melancolia.”

“Nem tudo é suportável quando se está longe”, afirma em certa hora o protagonista que, além dos traumas relacionados à separação de sua mãe ao ser obrigado a morar em Brasília, em decorrência da ditadura, tem outra ruptura adiante. Exilado em Paris, relembra de seu amadurecimento ingrato. Esta é a natureza deste romance de formação, com toda a complexidade das relações humanas, sem maniqueísmos.