Cinema

Documentário resgata obra e pensamento do tropicalista Rogério Duarte

Filme de José Walter Lima homenageia um dos maiores nomes da contracultura brasileira, o multi-artista que foi designer gráfico, tipógrafo, músico, poeta e um dos criadores da Tropicália

Fotos: Divulgação

‘Fui uma pessoa muito próspera e auspiciosa até determinada época. Depois da prisão, fui para o hospício, eu fui arrasado’

Há exatos 50 anos, nascia o disco-manifesto Tropicália, o marco fundador de um dos mais importantes movimentos musicais brasileiros. Para celebrar a efeméride e render uma justa homenagem, o cineasta, produtor e artista plástico José Walter Lima lançou esta semana nos cinemas o documentário Rogério Duarte, o Tropikaoslista, que dá voz ao ao multi-artista que é considerado mentor e um dos idealizadores do movimento tropicalista. 

A arte, as lembranças, as crenças, os hobbies e as reflexões sobre a Tropicália são apresentados por meio de um longo depoimento de Rogério Duarte. Não há entrevistas com outros artistas, amigos nem familiares. Na tela, fala apenas Duarte e imagens de arquivo dão conta do rico e conturbado universo do baiano nascido em Ubaíra.

Esse trabalho é uma tentativa de uma retomada da vanguarda artística do cinema brasileiro. Trata-se de um documentário sem as mesmices pachorrentas, cheio de entrevistas. Só quem fala é o protagonista. Nesse caso, Rogério Duarte. Ao longo desses anos, o que vemos é um deserto total no que se refere ao cinema de linguagem. Dentro desse conceito foi realizado esse filme, contando a magnitude tropical desse maravilhoso pensador, ator de muitas ações nos bastidores que contribuíram para mudar os paradigmas da cultura”, afirma o diretor José Walter Lima.

Duarte é o criador das capas dos principais discos tropicalistas, entre eles de álbuns de Caetano Veloso, Gilberto Gil e Jorge Mautner, além de cartazes de filmes, como Deus e O Diabo na Terra do Sol, Terra em Transe e Idade da Terra, de Glauber Rocha, o anárquico grito contra a ditadura Meteorango Kid, Herói Intergaláctico, de André Luiz Oliveira, O Desafio, de Paulo Cezar Saraceni, e Cara a Cara, de Julio Bressane.

Tropikaoslista

Gênio marginal

Ao sair da missa de sétimo dia do estudante Edson Luís, no Rio de Janeiro, Rogério e seu irmão foram sequestrados por agentes da ditadura. A brutalidade que sofreu durante os dez dias de tortura e o período que passou na prisão transformaram para sempre a vida do artista que, depois, teve de se esconder em sua cidade natal durante muitos anos em um processo que ele chama de “inxílio”.

Eu fui uma pessoa muito próspera e auspiciosa até uma determinada época. Depois da prisão, eu fui para o hospício, eu fui arrasado, digamos assim. Quando eu saí da prisão, eu vi a diferença: ninguém queria mais conversa comigo porque os ‘homens’ estavam atrás de mim, entende? Todos fecharam a porta. Todos. Primeiro, eu fui preso em abril e torturado, mas escapei e fiquei meio louco. Durante esse período, até o fim do ano, eu vivi uma vida de zumbi. Foi aí que ninguém queria mais me receber em lugar nenhum. Aí, eu pirei legal, né? Até que minha família me pegou e internou em São Paulo. No fim do exílio de Caetano, encontrei com ele na Bahia e disse: ‘Agora, nunca mais vou dar sopa’. Aquele charme discreto da burguesia nunca mais vai me pegar de novo”, declara Rogério no longa.

Não faltam, aliás, alfinetadas na turma que compunha o movimento tropicalista. “Há um componente político na Tropicália que foi um pouco esquecido. Se vamos falar do nosso tropicalismo, da Tropicália do Hélio [Oiticica], também do Caetano, sem dúvida nenhuma… Mas não dessa coisa que dizem da música popular que virou grife, meio colonizada e que também muito importa, mas [que] não tem a mesma contundência de protesto, de manifestação, de revolução, de transformação no nível político”, diz.

E continua: “Havia ideias tropicalistas que foram abandonadas. As próprias roupas que a gente usou na época do movimento, que o Guilherme [Araújo, entãoempresário de Caetano e Gil] comprava de Carnaby Street [em Londres]… A ideia inicial era figurinos feitos por Lina Bardi. Então, o Guilherme dá um jeito de ‘beatinizar‘ o tropicalismo. Na medida em que o establishment reencorporou o tropicalismo e o colocou a seu serviço, eu disse ‘Estou fora’.”

Em uma das metáforas mais bonitas do filme, Rogério Duarte explica sua postura marginal. “Como a gente era, assim digamos, à gauche [do francês, à esquerda] da Tropicália, eu fiz um trecho que se chama Marginália. Sou marginal porque descobri que a margem fica dentro do rio. Isso era muito mais importante porque era um paradoxo. A margem fica dentro do rio e não na margem. Mas o rio era o Rio de Janeiro.”

O engajamento na programação visual da União Nacional dos Estudantes, a UNE, as agitações tropicalistas com o grupo baiano e Hélio Oiticica, seus contatos com a Bossa Nova, a profunda amizade que nutria por Glauber Rocha, a descoberta do xadrez aos 50 anos, a vida de sitiante no interior da Bahia, sua dedicação ao movimento Hare Krishna e a descoberta do câncer também são abordados no filme.

Outro destaque é a participação de dois de seus companheiros tropicalistas na homenagem feita por José Walter Lima: Caetano Veloso canta Gayana, de autoria de Rogério, e Gilberto Gil interpreta Não Tenho Medo da Vida, que compôs depois de uma conversa com o Rogério.

Apesar da linearidade que não combina muito com a obra do protagonista, Rogério Duarte, o Tropikaoslista apresenta ao público a obra e o pensamento de um gênio provocador que nem sempre teve os créditos e a atenção que mereceu. Uma pena que esta celebração tenha chegado aos cinemas só dois anos depois de sua morte, em 2016.

CartazRogério Duarte, o Tropikaoslista
Direção: José Walter Lima
Elenco: Rogério Duarte, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Paquito, Carlos Rennó, Luis Caldas, Armandinho, Diogo Duarte
Distribuição: O2 Play
Ano: 2016
País: Brasil
Gênero: Documentário
Duração: 88 minutos