Cinema

‘Arábia’: quando o trabalho acaba com as esperanças do cidadão

Ficção de Affonso Uchôa e João Dumans narra vida de trabalhador braçal: exploração, ambientes insalubres e perigosos e luta por direitos são alguns temas do longa-metragem

Divulgação

Affonso: ‘Pessoas como Cristiano são como os heróis da literatura do passado, suas vidas são incríveis na sua grandeza e força’

“Quando a gente é novo, o mundo é um lugar cheio de coisas, cheio de promessas. Mas essa fábrica parece que tira a esperança das pessoas”. A frase de Cristiano (Aristides de Sousa) resume bem a sensação que o filme Arábia deixa no espectador: um gosto amargo pela certeza de que o trabalho no Brasil nem sempre dignifica quem trabalha.

Em cartaz nos cinemas, o longa-metragem dirigido por Affonso Uchôa e João Dumans é uma ficção que acompanha a vida de um trabalhador comum pelos rincões de Minas Gerais.

Depois de uma breve passagem pela prisão no começo da vida adulta, Cristiano trabalha em plantação de laranja, construção, transporte, tecelagem até chegar a uma fábrica de alumínio, em Ouro Preto.

O filme todo é contado a partir da narração em primeira pessoa das lembranças que anotou em seu diário, um projeto que começou a partir da sugestão do grupo de teatro de uma fábrica onde trabalhou. O que viveu, viu, as pessoas que conheceu, as injustiças, as aventuras e os apuros que passou pelas estradas da vida, estava tudo anotado em seu caderno velho.

Toda essa trajetória vem à tona quando Cristiano sofre um acidente de trabalho e André (Murilo Caliari), um adolescente que mora em um bairro vizinho, descobre o diário. Assim começa a história de Arábia, uma espécie de mergulho nas dores e belezas da vida de um rapaz comum, um trabalhador pouco escolarizado que, apesar de tímido, se abre para as ricas trocas que a vida propõe.

O recurso da voz em off está presente praticamente o tempo todo. “Essa decisão de ter a história do protagonista contada através de seu próprio caderno foi determinante para a estrutura do filme. Para nós, pessoas como Cristiano – e claro, Aristides de Sousa, o ator – são como os heróis da literatura do passado: suas vidas são simplesmente incríveis na sua grandeza e na sua força”, diz Uchôa.

“Queríamos dar à história de Cristiano essa qualidade literária, mas ao mesmo tempo, o caderno parecia ser um tipo de escrita mais plausível, e também menos nobre: não é um livro, não é uma novela, é uma espécie de diário. É o trabalho de um sujeito normal, não de um intelectual”, afirma um dos diretores, Affonso Uchôa.

Aristides Sousa, como Cristiano, em 'Arábia'

Pelas estradas da vida

Além da beleza do grande amor, Cristiano encontra pelo caminho patrões que não pagam, trabalhos insalubres, companheiros que lutam por melhorias nas condições de trabalho e também colegas com quem divide momentos regados à música e risada.

Tudo isso embalado por uma trilha sonora que, por si só, já valeria o ingresso: o folk americanoBlues Run de Game, de Jackson C. Frank, Três Apitos, de Noel Rosa, na voz de Maria Bethânia, Raízes, de Renato Teixeira, Cowboy Fora da Lei, de Raul Seixas, Homem na Estrada, de Mano Brown, e Marina, de Dorival Caymmi. A paisagem e o sotaque de Minas, as músicas e a história atuam tão sincronizadas que é impossível imaginar o filme sem esses elementos juntos.

A dança que o roteiro propõe e a vida dura de Cristiano – e de milhares de trabalhadores brasileiros por ele representados – fazem com que o personagem se torne tão próximo que dá até a impressão que ele realmente nos conduz pelas estradas por onde passa.

Somos seus companheiros de trabalho, dormimos com ele nos quartinhos úmidos e apertados e oferecemos o ombro para chorar quando a vida lhe dá rasteiras. Ele poderia muito bem ser alguém da família ou um amigo de infância. Suas memórias coreografam na tela um perfil do trabalhador brasileiro, aqueles mais invisíveis nas estatísticas, os que são os primeiros a sofrer quando o país desce ladeira abaixo.

Arábia é como uma fábula atual sobre o brasileiro comum que, achacado pelos trabalhos precários e pela marginalização orquestrada pela desigualdade social, acaba por perder a esperança. É isso que Cristiano quer gritar para o mundo, mas percebe – talvez tarde demais – que o som da fábrica sempre será mais alto que a própria voz.

Ao final, é este o seu lamento:

Desde que o Cascão foi demitido, eu tava perdendo o gosto de ir trabalhar. Mas aqui eu fui diferente. Eu senti o meu ouvido fechando e fiquei um pouco surdo por alguns segundos. Nesse momento, aconteceu uma coisa muito estranha: o barulho da fábrica sumiu e eu ouvi meu próprio coração. E, pela primeira vez, parei pra ver a fábrica e senti uma tristeza de estar ali.

Percebi que, na verdade, eu não conhecia ninguém, que tudo aquilo não significava nada pra mim. Foi como acordar de um pesadelo. Me sinto como um cavalo velho, cansado, meus olhos dóem, a cabeça dói, não tenho força pra trabalhar. Respiro rapidamente. Meu coração é uma bomba de sangue.

Queria puxar meus colegas pelo braço e dizer pra eles que eu acordei, que enganaram a gente a vida toda. Estou cansado, quero ir pra casa. Queria que todo mundo fosse pra casa. Queria que a gente abandonasse tudo, deixasse as máquinas queimando, o óleo derramando, os pedaços de ferro abandonados, a esteira desligada, a lava quente derramando e inundando tudo. Queimando as máquinas, a terra, a brita… E a fumaça subindo. Preto igual a noite. Tapando o céu e jogando dinheiro fora. E a gente ia estar em casa, tomando água, dormindo à tarde.

A gente ia tossir a fumaça preta, ia tossir fora os pedaços de ferro do nosso pulmão, o nosso sangue ia deixar de ser um rio de minério, de bauxita, de alumínio e ia voltar a ser vermelho, igual quando a gente é novo. E é por isso que eu queria chamar todo mundo. Chamar os forneiros, os eletricistas, os soldadores e os encarregados – os homens e as mulheres – e dizer no ouvido de cada um ‘Vamos pra casa. Nós somos só um bando de cavalos velhos.’ Mas ninguém ia ouvir porque ninguém quer ouvir isso.

O filme de Affonso Uchôa e João Dumans levou cinco prêmios na última edição do Festival de Brasília, entre eles, melhor filme e melhor ator, e circulou por mais de 50 festivais no mundo, nos quais ganhou mais de 10 prêmios.

ArábiaArábia
Direção e roteiro: Affonso Uchôa, João Dumans
Produtor: Vitor Graize
Produção executiva: Vitor Graize,Thiago Macêdo Correia
Direção de fotografia: Leonardo Feliciano
Elenco: Aristides de Sousa, Murilo Caliari, Glaucia Vandeveld, Renata Cabral, Renato Novaes, Wederson Neguinho, Adriano Araújo, Renan Rovida
Som: Pedro Durães, Gustavo Fioravante
Trilha sonora: Francisco Cesar, Christopher Mack
Direção de arte: Priscila Amoni, Janaína Macruz
Direção de produção: Marcela Jacques, Laura Godoy
Montagem: Luiz Pretti, Rodrigo Lima
Assistente de direção: Juliana Antunes
Distribuidora: Embaúba Filmes e Pique Bandeira
Ano de produção: 2017
Duração: 96 minutos
Empresas produtoras: Katásia Filmes, Vasto Mundo
Produção associada: Pique-Bandeira Filmes